1. Considerações iniciais
A possibilidade de uma democracia alternativa, em consonância com o modelo republicano e liberal foi ventilada pela primeira vez por Habermas em um texto que se tornou clássico como crítica ao liberalismo contemporâneo e o surgimento da comunicação de massa, aleatória, mas aliada do apetite de funcionamento da produtividade. Se por um lado, temos o modelo do republicanismo se encarregando de mediar processos democráticos, mais do que a função da mera mediação, vemos a consolidação do constitucionalismo na formação da sociedade; por outro, temos o liberalismo, com o Estado programado para servir de laboratório dos interesses da sociedade; impondo os interesses da sociedade civil, inclusive. Este ensaio, primeiramente, resenha a ideia central do modelo de democracia deliberativa de Habermas e, depois, insere seus três principais conceitos em um contexto colonizado. Cidadão, direito e processo político são vistos exemplificados no Amapá, onde o simulacro do modelo liberal e republicano de democracia se confunde com as diversas camadas de colonização empregadas sobre o mundo da vida.
Mesmo tendo comparado ambos os modelos de democracia contemporâneos, liberal e republicano, Habermas não os contrapõe de maneira invariável, admitindo a inclusão concomitante de ambos dentro do cenário das democracias modernas. Pelo contrário, é pela convivência permanente dos modelos republicano e liberal que o autor sugere um modelo alternativo, interno a sua teoria do discurso, ou democracia deliberativa. Com a representação dos modelos anteriores, busca-se fortalecer o modelo liberal e enfraquecer o republicano, até um ponto de encontro. Enquanto a tensão entre os dois modelos permanece, com o desacoplamento entre política e sociedade, as soluções parciais também vão surgindo, como a tentativa de reacoplamento feita pela administração pública com a comunicação de massa, o jornalismo se transforma em oficialato, enquanto o entretenimento se marginaliza ou ocupa uma posição passiva; na gíria brasileira: “pão e circo”. A formação da sociedade republicana, munida desta complexificação da ética, promove noções importantes para o funcionamento dos modelos de democracia vigentes. Solidariedade, por exemplo, torna-se uma parte fundamental dessa nova ordem. Uma vez que estejam mantidas as noções de desacoplamento e reacoplamento, advindas dos pressupostos liberais, o republicanismo se encarrega da mediação constitucional, de onde o estado e a sociedade de mercado se encarregam da formação de uma burocracia sobre o bem-estar social. Institucionaliza-se, em definitivo, a solidariedade – antes, uma mera ideia entre outras virtudes mais rígidas do cristianismo – como padrão de reconhecimento e legitimação social.
O mesmo acontece com outros conceitos decompostos ou criados em meio a democracia: sobrevivem em zona cinzenta, sem objetividade, mas como válvulas de escape das tensões sociais do novo estágio alcançado. O “cidadão” passa a ser o indivíduo que delibera politicamente sem coações externas, em substituição ao súdito, de quem herda as liberdades pré-políticas. O direito, na mesma esteira, passa a ser o direito à personalidade jurídica, não só como direitos subjetivos (liberalismo), mas especialmente no sentido republicano com a personificação do cidadão, instituições, empresas, e direitos propositalmente objetivados. A lei que está legitimada pelos dois modelos de democracia altera o processo político em uma zona de intersubjetividade.
O próprio Habermas admite certos limites para este processo de assentimento do cidadão por meio das pessoas e dos programas agendados em meio a liberdade de associação entre liberais e republicanos. O ponto de convergência, antes discutidos no âmbito do mercado, passa para o diálogo, mas sem grandes alterações no modus operandi da democracia. O foco do republicanismo e dos conflitos privados passam a ser mediados pela publicidade dada ao embate dos assuntos público, submersa a um pretenso argumento racional. Já na década de 90, na comparação entre os modelos liberais e republicano, com seus eixos no mercado e nos projetos, o autor compreende que o grande modelo se resume a tensão entre comunitaristas e liberais com o estreitamento ético dos discursos em um palco bastante específico: Estados Unidos da América. Já a teoria do discurso nasce no vácuo cultural da capacidade de sociedades serem mais ou menos recolonizadas por comunitaristas e liberais, nas diferentes formas que essas noções chegam em ambientes periféricos. A pretensão da democracia deliberativa de Habermas, neste aspecto, parece respeitar um certo gradualismo na diferença encontrada em meio a outras tensões políticas. Mais adiante, veremos se essa concepção se mantém.
A Teoria da Ação Comunicativa (1981), obra seminal da teoria do discurso, já articulava, 10 anos antes da crítica aos modelos de democracia, os limites dos direitos fundamentais impostos pela defesa contemporânea do Estado de Direito. Agora, o autor tem a oportunidade de expor outra parte da sua crítica: a articulação emergente da vontade comum, por meio das agendas do liberalismo contrastadas pelo republicanismo. A opinião da sociedade passa a importar nas demandas com uma intersubjetividade de ordem superior. O uso da comunicação para fomentar decisões eleitorais e legislativas é parte importante desse novo uso no qual lobby e ativismo se confundem na comunicação de massa; e a diversidade de espaços públicos considerados “autônomos” para a interação é altamente demandado pela diversidade interna das sociedades, antes isoladas da influência das novas propostas e agendas liberais.
Habermas nos demonstra com o amadurecimento de sua obra que a colonização, muitas vezes, é apresentada em “camadas”, não só no espaço e tempo, mas na maneira como as diferentes zonas de domínio chegam aos lugares marginalizados e historicamente ignorados do Globo. Quando a teoria comunicativa exige a participação do cidadão na esfera pública “descobre-se” uma maneira de institucionalizar a liberdade civil do sujeito, reclama-se um modelo de institucionalização em meio ao republicanismo. Essas demandas normalmente são atendidas, mas não necessariamente da mesma maneira que se institucionalizam atores políticos em repúblicas como os Estados Unidos da América. O mesmo acontece quando a esfera do direito precisa de uma concepção liberal para orientar a ordem jurídica, seja pela burocracia ou pelo novo grupo de agentes, outrora impedidos de acessar livremente a ordem jurídica. Resta ao processo político fazer uso da esfera pública com uma comunicação orientada pelo entendimento; neste novo espaço de deliberação se encontrará o processo de formação do cidadão e de exteriorização da vontade política, por meio dos projetos.
Habermas nos mostrou uma nova exigência da filosofia política contemporânea, tal qual apresentada nas democracias liberais, com a necessidade de superarmos o discurso ético, com outras concepções valorativas; passamos a buscar direito positivados para “guardar” conformidade com princípios morais, sem usá-los necessariamente na esfera pública. Dessa nova atitude dependem os direitos do homem e a eticidade nas comunidades liberais.
A teoria do discurso com a democracia deliberativa busca fortalecer o modelo liberal e enfraquecer o modelo republicano até um ponto de convergência, a cidadania. Um novo ator coletivo junta-se aos conceitos de cidadão, direito e processo político para incorporar a solidariedade como força de interação social, sem a necessidade de tornar patrimonialista os espaços públicos ou terceirizar os procedimentos de formação democrática, solidificando-os. O poder administrativo assim superaria as forças políticas no controle dos recursos da comunidade para incorporação da solidariedade, mas não é assim que acontece na prática de comunidades pretensamente liberais, colonizadas e recolonizadas como aquela que passamos a descrever agora em três contraexemplos, o ex-território do estado do Pará, atual estado brasileiro do Amapá.
2. Processo político: a esfera pública da democracia na colonização cebola
O modelo de democracia deliberativa de Habermas é condicionado pelas resistentes atividades políticas e públicas nas comunidades onde o liberalismo não é uma realidade materializada e as concepções de moralidade não se alteram, mas se adaptam ao discurso da eticidade vigente. O processo político obliterado pelo simulacro de democracia, no estado brasileiro do Amapá, tem contornos que alteram a vontade política da maioria, não restando espaço para qualquer elemento deliberativo.
O Amapá é um estado-ilha do Brasil, não literalmente uma ilha, como veremos. A história do ex-território o faz ser pensado como algo que ele não é: isolado por terra do restante do Brasil no platô das guianas, sem fronteiras por terra ou pontes com o Brasil, mas com fronteira por terra em local ermo e sem acesso ao Suriname e com fronteira por ponte sobre o rio Oiapoque. Paradoxalmente, o lugar com mais fácil acesso terrestre é o mais distante no imaginário do amapaense médio: a Guiana Francesa, zona do euro e formalmente território colonizado até os dias de hoje. Os acordos de acesso entre Brasil e França não são propriamente bilaterais. A ponte que liga os países existe por interesse e recursos brasileiros, mas é usada quase que exclusivamente pelos chamados “franceses”, em direção ao território brasileiro, sem a cobrança de taxas para veículos ou exigência de vistos, exatamente as demandas jamais flexibilizadas para brasileiros em território ultramarino da França. No município brasileiro de Oiapoque, é consenso que o melhor jeito de acessar o território francês são as chamadas “voadeiras”, pequenas embarcações que fazem o trajeto pela água com facilidade e contando com uma fiscalização conivente e propositalmente fragilizada da França. O interesse do Brasileiro por uma moeda economicamente mais fortalecida, não se contenta em margear o município francês de Saint-Georges-de-l'Oyapock, mas invade o território por diversos meios e por diversos motivos. Não é incomum a repercussão de casos trágicos envolvendo acidentes de trabalho em regiões de garimpos ou acidentes náuticos com brasileiros. Em agosto de 2021, 19 compatriotas morreram na costa do oceano Atlântico, em uma canoa que provavelmente tentava circundar a costa guianense do rio Oiapoque até o rio Aproak. Especula-se que todos trabalhariam ou prestariam serviços em área de garimpo.
A miséria brasileira com relação ao respingo de euros na região contrasta com a visibilidade que o território francês tem no imaginário local: passa a impressão de que a Guiana Francesa é um lugar mais rico, mais influente; contudo não se trata de uma porta de entrada de brasileiros na Europa, mas de um local diretamente submergido em sua própria colonização, prova indelével que vem quando os discursos ambientais válidos no terreno do colonizador não se reproduzem como ações nos territórios colonizados. A balança comercial da Guiana Francesa não é divulgada com exatidão - separada da movimentação comercial francesa, mas se estima que 30% do PIB seja representado pelas mineradoras de ouro (dados de 2012). Os valores contrastam com a necessidade de subsídios e benefícios para a população local, dependente da França metropolitana.
Com isso, mostramos que a colonização brasileira se dá em camadas, como uma cebola, no mundo da vida dos habitantes locais. Uma colonização cultural, econômica e ainda política, relacionada a outro local colonizado, igualmente de costas para o poder político central. O sonho pela melhoria na qualidade de vida de muitos amapaense depende de uma colônia estrangeira e os vistos são emitidos exclusivamente da embaixada francesa mais próxima, em Brasília. O Brasileiro amapaense não vive apenas ilhado, mas seus interesses públicos na democracia nacional são como exclaves da geopolítica brasileira, separados da pátria mãe, não como um território ultramarino, a exemplo da Guiana Francesa, mas isolados e dependente de outras articulações para acessar a democratização de bens e serviços.
Outra marca indelével da colonização em camadas, também pode ser observada na comunicação da política amapaense. Diante de nomes locais com alguma expressão intermediária ou em ascensão, José Sarney foi e segue sendo o maior nome da história na política local. Em meio a outros atores políticos importados no passado, como o paraense Coaracy Nunes, o ex-presidente da república escolheu o Amapá para fincar suas estacas políticas. Foi presidente do Senado da República pelo Estado, formou lideranças locais, mas jamais morou aqui. Mantém jornalistas locais como seus assessores de imprensa e, finalmente aposentado da vida política, sustenta uma vida pública tímida no Amapá, com reproduções de algumas colunas republicadas em um jornal local, chamado Diário Popular. A fonte original dos textos publicados por Sarney segue sendo o jornalismo maranhense.
A colonização cultural não vem sem a colonização política e econômica. O principal apadrinhado político de Sarney é Davi Alcolumbre (União). Também ex-presidente do Senado, ele é atualmente o político local de maior influência nacional. Destinador de emendas e verbas para manter seu apoio político, Alcolumbre segue o caminho do tutor e reconhece a importância da colonização pela cultura e pelo imaginário. Os recursos do seu gabinete sustentam, no Amapá, a Nagib Comunicação e Marketing LTDA (10.278.118/0001-30), propriedade de Naiara Patrícia Barbosa Richene e Francisco Nagib Amin Richene Junior. No ano de 2023, a empresa empenhou 12 notas fiscais totalizando R$ 310 mil para sustentar a família Nagib, uma das responsáveis pela campanha de Alcolumbre no Amapá. Os valores públicos são empenhados como “divulgação de atividade parlamentar”, fora do período de campanha, diretamente ligados ao gabinete do senador.
O mesmo método é utilizado pelo senador Lucas Barreto (PSD). Junto com Alcolumbre, Barreto compra apoio local, ou pelo menos o silêncio conivente, de Sales Nafes que se apresenta como jornalista. O blogueiro é conhecido nas redes sociais pelas notícias policiescas e populares, mistura textos escritos por pastores neopentecostais e entrevistas feitas com delegados. No seu site, chamado de “portal”, há publicidades diversificadas, mas sempre ligadas às instituições públicas (prioritariamente: governos, ensino e companhias públicas). Em 2023, S Nafes M Da Silva Junior (18.827.227/0001-70) empenhou 23 vezes em nome de dois senadores. Cobrados, os amapaenses dispenderam R$90 mil em recursos públicos para sustentar o site; Barreto com 12 empenhos e Alcolumbre com 11; a emissão de notas variou entre R$ 2mil e R$8mil. O jornalismo local inexiste com a prática. Nas concessões públicas de rádio e TV, os políticos e os governos são os principais protagonistas, divulgando políticas públicas, obras e, especialmente, eventos.
3. A concepção da ordem jurídica na colonização cebola
A maior empresa que já existiu no Amapá chamou-se Icomi, a Sociedade Brasileira de Indústria e Comércio de Minérios de Ferro e Manganês. Diante das multinacionais estrangeiras vencedoras da licitação (Hanna Coal and Ore Corporation), prevaleceu o lobby do mineiro Augusto Antunes em 1947. Ele recorreu ao próprio presidente Dutra com um discurso nacionalista e liberal e iniciou a prospecção do minério de manganês na localidade de Serra do Navio no ano seguinte. A Icomi tinha também a preferência de Janary Nunes (primeiro governador do território e irmão do já citado Coaracy). Apesar da aproximação dos políticos locais com o trust estrangeiro, prevaleceu o patrimonialismo da família Nunes com a industrialização nacionalista, com aspectos pouco liberais e, como veremos, nada republicanos.
Mesmo com o fim do Estado Novo, Janary havia visitado, anos antes, a sede da Icomi em Belo Horizonte. O discurso desenvolvimentista nacional durou pouco tempo: em 1949, a empresa uniu-se a estadunidense Bethlehem Steel Company. Em meio a incerteza do governo Dutra sobre a participação estrangeira nos recursos naturais do Brasil, a disputa entre liberalismo e republicanismo ficou latente; a natureza jurídica da empresa, nesse cenário, operou na incerteza jurídica do primeiro ao último dia.
A rota mais movimentada da Amapá na segunda metade do século passado foi a estrada de ferro entre Serra do Navio e o porto de Santana. Hoje abandonada, a ferrovia serviu para a Icomi transformar Serra do Navio em uma cidade fantasma. A vila operária do município é hoje a segunda estrutura arquitetônica tombada como patrimônio material pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Estado. Em abril de 2010 o tombamento foi oficializado, mas Serra do Navio não compete em atenção turística ou imponência com a Fortaleza de São José de Macapá, na orla do Rio Amazonas, em Macapá. Mesmo assim, Serra do Navio existe sem acesso asfáltico, e praticamente todos os prédios construídos pela mineradora nas décadas de 50 e 60 na Vila de Serra do Navio foram tombados; as edificações estão hoje abandonadas ou servem de moradia aos “filhos e netos” da Icomi.
A contaminação do lençol freático, igarapés e rios com ferro, arsênio e manganês veio acompanhada pela principal “atração turística” do interior do Amapá: as chamadas lagoas azuis. Atualmente, parte da população local sobrevive de pousadas, restaurantes e excursões em um “turismo de selfie”. A quantidade de minérios na formação das lagoas que ascendem das antigas escavações traz imagens de águas translúcidas, foco das lentes dos visitantes. Os turistas eventuais adoram. Carreatas de amapaenses e turistas de outros lugares (incluindo guianeses e franceses) se dirigem ao hoje município de Serra do Navio por estradas esburacadas. Alguns fazem tracking pelas matas e passam pelas ruinas das plantas industriais da Icomi, acampando no alto da montanha do que foi a mina do quadrante F12. Diante de uma lagoa azul e com temperaturas mais amenas, os turistas acompanham o nascer do sol, em meio a neblina, inexistente nas regiões de planalto, distantes da serra.
Mesmo com o trabalho hercúleo do Iphan, inúmeras intervenções inadequadas foram feitas em prédios tombados, especialmente nas residências utilizadas por moradores. Restaurantes improvisados e pousadas surgiram para atender a nova demanda. Os restos de Serra do Navio que não foram levados do Amapá subsistem em montanhas de minério de ferro, tanto lá quanto nas margens do porto de Santana. Vinte anos depois do fim da extração, em 2017, a Justiça Federal autorizou a empresa a redestinar o estoque; 5% do valor arrecadado com as vendas devem ser colocados em um fundo da Câmara de Conciliação que adjudica o prejuízo em benefício do município de Serra do Navio.
A concepção liberal como orientação da ordem jurídica fracassou duas vezes: quando a Icomi passou na frente das multinacionais e depois filiou-se a uma delas, e quando ignorou o passivo ambiental abandonado no interior do Amapá. No final dos anos 50, os trabalhadores terceirizados, especialmente para instalação da planta industrial comprada com os americanos, se reduziu a pouco mais de 200. A empresa que teve um auge de 1200 funcionários contratados, foi perdendo a receita das commodities o início dos anos 80, quando africanos e asiáticos despejaram manganês no mercado internacional; o produto se desvalorizou. A bancarrota total veio em 1998 quando o último contrato de trabalho direto com Icomi foi rescindido. A estrutura de terceirizados subsiste especialmente com serviços de zeladoria e vigilância.
A colonização do território pelas vidas do direito não parece ter garantido uma concepção liberal suficientemente sólida para orientar a ordem jurídica no caso do Amapá.
4. O cidadão paraense, primeira camada da cebola, colonizador e colonizado
Ao falar dos primeiros políticos amapaense, passa-se a impressão de que a colonização vinda do estado do Pará é tão unilateral quanto a fronteira com a Guiana Francesa, para proveito só de um. No entanto, o Amapá possui um elemento constrangedor e inflacionado desde a institucionalização do território em 1943, a forte dependência do poder público como empregador ou gerador de força e renda. Com o fim do território e o surgimento do Estado, enquanto Unidade da Federação, manteve-se o relacionamento do Amapá, especialmente da região metropolitana de Macapá e Santana, com a maior divisa natural de dois territórios brasileiros: a foz do Rio Amazonas. No outro lado do rio, o chamado ABC do Marajó (Afuá, Breves e Chaves) é uma complexa teia de corredores marítimos em meio às ilhas do maior arquipélago fluvial do mundo, o Marajó.
A maioria dos cidadãos brasileiros habitantes das ilhas também estão de costas para o poder político do Estado do Pará. Com o fim do território, o Amapá se tornou o centro comercial e de assistência dessas pessoas. O maior consumidor de farinha, açaí e consequentemente fornecedor de serviços públicos para as ilhas do Pará é o Amapá. Muitas comunidades afastadas da sede de seus municípios não possuem escolas públicas de Ensino Médio. As turmas aglutinam alunos por idade; e enviar um filho para estudar em Macapá ou Santana é economicamente mais racional do que o enviar para a sede do município.
A cidadania marajoara é compartilhada com o Amapá no sentido cultural e comercial. Hoje a rota mais movimentada do Amapá é pelas águas: na circulação de barcos, navios e embarcações menores em direção às ilhas do Pará, especialmente Afuá, e vice-versa. A massiva injeção de dinheiro público em shows e eventos nacionais, especialmente, pelas prefeituras em anos eleitorais, traz visitantes que muitas vezes passam apenas uma noite em Macapá e retornam em viagem de duas horas para a “Veneza Marajoara”. A movimentação contrária também é latente. Sem estrutura turística, com poucas pousadas e apenas um hotel com 15 quartos, o Afuá vê sua população de 37 mil habitantes triplicar no Festival do Camarão. As pessoas acampam em redes, nos pátios e praças e especialmente dentro das embarcações, com o mesmo objetivo: acompanhar shows e circular pelo evento.
A cultura musical mais difundida na região é o tecno-brega. Versões abrasileiradas de músicas internacionais de sucesso, distorção na voz dos cantores (e especialmente cantoras) são as únicas regras sem variação: tanto no Amapá quanto no Afuá, existe uma ojeriza pelo silêncio. O sucesso artístico na maioria das vezes depende mais da cor e do tamanho do equipamento que da popularidade da música que toca. A aparelhagem se sobressai em tamanho e ornamentação, com luzes de led e pinturas vibrantes contrastando com a calma na qual a maré de altera. No Afuá, as caixas de som que são carregadas pelas bicicletas muitas vezes têm um valor comercial maior que o próprio meio de transporte. Trata-se do único município do Brasil onde carros e motocicletas são proibidos por lei municipal, pois a cidade inteira existe em área de pontes, dando exclusividade de transporte por tração humana.
As noções gerais de cidadania funcionam sem a institucionalização da liberdade pública da maneira mais literal possível, a informalidade. Inexiste perturbação do sossego quando portas não precisam ser trancadas ou o são como simulacro da burocracia. A responsabilidade civil toca apenas o limite do dano. Casamentos, relações de trabalho e responsabilidades familiares são menos institucionalizadas que qualquer evento de tecno-brega ou o horário de baixar o volume para permitir que idosos e crianças durmam.
5. Considerações finais
Percorremos assim três exemplos que tratam do problema do liberalismo e da tensão acumulada com o republicanismo. Nesse sentido, cidadão, direito e processos políticos funcionam em meio a uma colonização bastante peculiar, com aspectos que coincidem com o de países que passaram por revoluções liberais, mas esbarra em um cenário de contradições internas muito particulares. Vemos assim que a cidadania não é necessariamente, como apregoava Habermas, um novo ator coletivo, apenas incorporando noções de solidariedade – forçosamente – diante da interação social acumulada, como maneira de controle social pelo poder administrativo. A institucionalização da cidadania, neste aspecto, não toca necessariamente a teoria liberal exigida no ambiente público, pelas regras advindas de uma concepção republicana de sociedade. O poder público serve apenas como assistencial, podendo se dar ao luxo de ignorar a sociedade em absoluto quando o assunto for a tentativa de mediação.
De maneira nada liberal, também se observa que a esfera dos direitos fundamentais e do estado de direito não interagem com a articulação da opinião em vontade comum (republicana). Da mesma maneira que o modo de viver da economia insustentável preconizado no passado, o Amapá volta a agenda nacional do direito apenas quando fracassarem as condições de conciliação. Discute-se, assim, apenas a tensão entre capital desenvolvimentista e “benefícios” sociais que nunca chegaram ou chegarão, como no caso das especulações em torno da extração de petróleo na foz do Rio Amazonas, pauta nacionalizada que vem importada pelos políticos locais instalados em Brasília. Trata-se da questão no Amapá como “último recurso” para desenvolvimento do Estado; mente-se deliberadamente sobre os benefícios para a população local; e a solidariedade transforma-se em uma agenda dependente da administração pública e não da sociedade civil organizada. A concepção liberal pode, mais uma vez, orientar parte da ordem jurídica, mas não se sustenta em meio as práticas não-republicanas.
Da mesmíssima forma o processo político não terá condições de consolidar a esfera pública aprimorando o mecanismo da democracia deliberativa sem algum grau de independência da informação. A comunicação pública não tem uma sustentação orientada para o entendimento, quando comprada pela massa de políticos e especuladores.
Em resumo, não parece haver nenhuma condição material para ultrapassar o discurso ético através de concepções políticas valorativas como as estudas. Cidadão, direito e processo político servem muito para aqueles interessados em respostas fácies para questões difíceis, mas a eticidade da comunidade e os direitos dos homens seguem vulneráveis a ataques. Contamos assim, apenas, com as alternativas marginalizadas, seja pela falsa promessa desenvolvimentista, seja pelo projeto permanente de gradualismo nas alterações de base econômica. O modelo de democracia deliberativa, como vimos, não pode ser usado como alternativa às alterações graduais que o Brasil tem de modelo desde sua colonização, pelo contrário, podem ser reinterpretados como traumaticamente gradualistas.
6.
Referências
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XII Congresso Brasileiro de História Econômica & 13ª Conferência
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