terça-feira, 3 de setembro de 2024

Amapá: três modelos de democracia cebola

 1.               Considerações iniciais

A possibilidade de uma democracia alternativa, em consonância com o modelo republicano e liberal foi ventilada pela primeira vez por Habermas em um texto que se tornou clássico como crítica ao liberalismo contemporâneo e o surgimento da comunicação de massa, aleatória, mas aliada do apetite de funcionamento da produtividade. Se por um lado, temos o modelo do republicanismo se encarregando de mediar processos democráticos, mais do que a função da mera mediação, vemos a consolidação do constitucionalismo na formação da sociedade; por outro, temos o liberalismo, com o Estado programado para servir de laboratório dos interesses da sociedade; impondo os interesses da sociedade civil, inclusive. Este ensaio, primeiramente, resenha a ideia central do modelo de democracia deliberativa de Habermas e, depois, insere seus três principais conceitos em um contexto colonizado.  Cidadão, direito e processo político são vistos exemplificados no Amapá, onde o simulacro do modelo liberal e republicano de democracia se confunde com as diversas camadas de colonização empregadas sobre o mundo da vida.

Mesmo tendo comparado ambos os modelos de democracia contemporâneos, liberal e republicano, Habermas não os contrapõe de maneira invariável, admitindo a inclusão concomitante de ambos dentro do cenário das democracias modernas. Pelo contrário, é pela convivência permanente dos modelos republicano e liberal que o autor sugere um modelo alternativo, interno a sua teoria do discurso, ou democracia deliberativa. Com a representação dos modelos anteriores, busca-se fortalecer o modelo liberal e enfraquecer o republicano, até um ponto de encontro. Enquanto a tensão entre os dois modelos permanece, com o desacoplamento entre política e sociedade, as soluções parciais também vão surgindo, como a tentativa de reacoplamento feita pela administração pública com a comunicação de massa, o jornalismo se transforma em oficialato, enquanto o entretenimento se marginaliza ou ocupa uma posição passiva; na gíria brasileira: “pão e circo”. A formação da sociedade republicana, munida desta complexificação da ética, promove noções importantes para o funcionamento dos modelos de democracia vigentes. Solidariedade, por exemplo, torna-se uma parte fundamental dessa nova ordem. Uma vez que estejam mantidas as noções de desacoplamento e reacoplamento, advindas dos pressupostos liberais, o republicanismo se encarrega da mediação constitucional, de onde o estado e a sociedade de mercado se encarregam da formação de uma burocracia sobre o bem-estar social. Institucionaliza-se, em definitivo, a solidariedade – antes, uma mera ideia entre outras virtudes mais rígidas do cristianismo – como padrão de reconhecimento e legitimação social.

O mesmo acontece com outros conceitos decompostos ou criados em meio a democracia: sobrevivem em zona cinzenta, sem objetividade, mas como válvulas de escape das tensões sociais do novo estágio alcançado. O “cidadão” passa a ser o indivíduo que delibera politicamente sem coações externas, em substituição ao súdito, de quem herda as liberdades pré-políticas. O direito, na mesma esteira, passa a ser o direito à personalidade jurídica, não só como direitos subjetivos (liberalismo), mas especialmente no sentido republicano com a personificação do cidadão, instituições, empresas, e direitos propositalmente objetivados. A lei que está legitimada pelos dois modelos de democracia altera o processo político em uma zona de intersubjetividade.

O próprio Habermas admite certos limites para este processo de assentimento do cidadão por meio das pessoas e dos programas agendados em meio a liberdade de associação entre liberais e republicanos. O ponto de convergência, antes discutidos no âmbito do mercado, passa para o diálogo, mas sem grandes alterações no modus operandi da democracia. O foco do republicanismo e dos conflitos privados passam a ser mediados pela publicidade dada ao embate dos assuntos público, submersa a um pretenso argumento racional. Já na década de 90, na comparação entre os modelos liberais e republicano, com seus eixos no mercado e nos projetos, o autor compreende que o grande modelo se resume a tensão entre comunitaristas e liberais com o estreitamento ético dos discursos em um palco bastante específico: Estados Unidos da América. Já a teoria do discurso nasce no vácuo cultural da capacidade de sociedades serem mais ou menos recolonizadas por comunitaristas e liberais, nas diferentes formas que essas noções chegam em ambientes periféricos. A pretensão da democracia deliberativa de Habermas, neste aspecto, parece respeitar um certo gradualismo na diferença encontrada em meio a outras tensões políticas. Mais adiante, veremos se essa concepção se mantém.

A Teoria da Ação Comunicativa (1981), obra seminal da teoria do discurso, já articulava, 10 anos antes da crítica aos modelos de democracia, os limites dos direitos fundamentais impostos pela defesa contemporânea do Estado de Direito. Agora, o autor tem a oportunidade de expor outra parte da sua crítica: a articulação emergente da vontade comum, por meio das agendas do liberalismo contrastadas pelo republicanismo. A opinião da sociedade passa a importar nas demandas com uma intersubjetividade de ordem superior. O uso da comunicação para fomentar decisões eleitorais e legislativas é parte importante desse novo uso no qual lobby e ativismo se confundem na comunicação de massa; e a diversidade de espaços públicos considerados “autônomos” para a interação é altamente demandado pela diversidade interna das sociedades, antes isoladas da influência das novas propostas e agendas liberais.

Habermas nos demonstra com o amadurecimento de sua obra que a colonização, muitas vezes, é apresentada em “camadas”, não só no espaço e tempo, mas na maneira como as diferentes zonas de domínio chegam aos lugares marginalizados e historicamente ignorados do Globo. Quando a teoria comunicativa exige a participação do cidadão na esfera pública “descobre-se” uma maneira de institucionalizar a liberdade civil do sujeito, reclama-se um modelo de institucionalização em meio ao republicanismo. Essas demandas normalmente são atendidas, mas não necessariamente da mesma maneira que se institucionalizam atores políticos em repúblicas como os Estados Unidos da América. O mesmo acontece quando a esfera do direito precisa de uma concepção liberal para orientar a ordem jurídica, seja pela burocracia ou pelo novo grupo de agentes, outrora impedidos de acessar livremente a ordem jurídica. Resta ao processo político fazer uso da esfera pública com uma comunicação orientada pelo entendimento; neste novo espaço de deliberação se encontrará o processo de formação do cidadão e de exteriorização da vontade política, por meio dos projetos.

Habermas nos mostrou uma nova exigência da filosofia política contemporânea, tal qual apresentada nas democracias liberais, com a necessidade de superarmos o discurso ético, com outras concepções valorativas; passamos a buscar direito positivados para “guardar” conformidade com princípios morais, sem usá-los necessariamente na esfera pública. Dessa nova atitude dependem os direitos do homem e a eticidade nas comunidades liberais.

A teoria do discurso com a democracia deliberativa busca fortalecer o modelo liberal e enfraquecer o modelo republicano até um ponto de convergência, a cidadania. Um novo ator coletivo junta-se aos conceitos de cidadão, direito e processo político para incorporar a solidariedade como força de interação social, sem a necessidade de tornar patrimonialista os espaços públicos ou terceirizar os procedimentos de formação democrática, solidificando-os. O poder administrativo assim superaria as forças políticas no controle dos recursos da comunidade para incorporação da solidariedade, mas não é assim que acontece na prática de comunidades pretensamente liberais, colonizadas e recolonizadas como aquela que passamos a descrever agora em três contraexemplos, o ex-território do estado do Pará, atual estado brasileiro do Amapá.

 

2.               Processo político: a esfera pública da democracia na colonização cebola

O modelo de democracia deliberativa de Habermas é condicionado pelas resistentes atividades políticas e públicas nas comunidades onde o liberalismo não é uma realidade materializada e as concepções de moralidade não se alteram, mas se adaptam ao discurso da eticidade vigente. O processo político obliterado pelo simulacro de democracia, no estado brasileiro do Amapá, tem contornos que alteram a vontade política da maioria, não restando espaço para qualquer elemento deliberativo.

O Amapá é um estado-ilha do Brasil, não literalmente uma ilha, como veremos. A história do ex-território o faz ser pensado como algo que ele não é: isolado por terra do restante do Brasil no platô das guianas, sem fronteiras por terra ou pontes com o Brasil, mas com fronteira por terra em local ermo e sem acesso ao Suriname e com fronteira por ponte sobre o rio Oiapoque. Paradoxalmente, o lugar com mais fácil acesso terrestre é o mais distante no imaginário do amapaense médio: a Guiana Francesa, zona do euro e formalmente território colonizado até os dias de hoje. Os acordos de acesso entre Brasil e França não são propriamente bilaterais. A ponte que liga os países existe por interesse e recursos brasileiros, mas é usada quase que exclusivamente pelos chamados “franceses”, em direção ao território brasileiro, sem a cobrança de taxas para veículos ou exigência de vistos, exatamente as demandas jamais flexibilizadas para brasileiros em território ultramarino da França. No município brasileiro de Oiapoque, é consenso que o melhor jeito de acessar o território francês são as chamadas “voadeiras”, pequenas embarcações que fazem o trajeto pela água com facilidade e contando com uma fiscalização conivente e propositalmente fragilizada da França. O interesse do Brasileiro por uma moeda economicamente mais fortalecida, não se contenta em margear o município francês de Saint-Georges-de-l'Oyapock, mas invade o território por diversos meios e por diversos motivos. Não é incomum a repercussão de casos trágicos envolvendo acidentes de trabalho em regiões de garimpos ou acidentes náuticos com brasileiros. Em agosto de 2021, 19 compatriotas morreram na costa do oceano Atlântico, em uma canoa que provavelmente tentava circundar a costa guianense do rio Oiapoque até o rio Aproak. Especula-se que todos trabalhariam ou prestariam serviços em área de garimpo.

A miséria brasileira com relação ao respingo de euros na região contrasta com a visibilidade que o território francês tem no imaginário local: passa a impressão de que a Guiana Francesa é um lugar mais rico, mais influente; contudo não se trata de uma porta de entrada de brasileiros na Europa, mas de um local diretamente submergido em sua própria colonização, prova indelével que vem quando os discursos ambientais válidos no terreno do colonizador não se reproduzem como ações nos territórios colonizados. A balança comercial da Guiana Francesa não é divulgada com exatidão - separada da movimentação comercial francesa, mas se estima que 30% do PIB seja representado pelas mineradoras de ouro (dados de 2012). Os valores contrastam com a necessidade de subsídios e benefícios para a população local, dependente da França metropolitana.

Com isso, mostramos que a colonização brasileira se dá em camadas, como uma cebola, no mundo da vida dos habitantes locais. Uma colonização cultural, econômica e ainda política, relacionada a outro local colonizado, igualmente de costas para o poder político central. O sonho pela melhoria na qualidade de vida de muitos amapaense depende de uma colônia estrangeira e os vistos são emitidos exclusivamente da embaixada francesa mais próxima, em Brasília. O Brasileiro amapaense não vive apenas ilhado, mas seus interesses públicos na democracia nacional são como exclaves da geopolítica brasileira, separados da pátria mãe, não como um território ultramarino, a exemplo da Guiana Francesa, mas isolados e dependente de outras articulações para acessar a democratização de bens e serviços.

Outra marca indelével da colonização em camadas, também pode ser observada na comunicação da política amapaense. Diante de nomes locais com alguma expressão intermediária ou em ascensão, José Sarney foi e segue sendo o maior nome da história na política local. Em meio a outros atores políticos importados no passado, como o paraense Coaracy Nunes, o ex-presidente da república escolheu o Amapá para fincar suas estacas políticas. Foi presidente do Senado da República pelo Estado, formou lideranças locais, mas jamais morou aqui. Mantém jornalistas locais como seus assessores de imprensa e, finalmente aposentado da vida política, sustenta uma vida pública tímida no Amapá, com reproduções de algumas colunas republicadas em um jornal local, chamado Diário Popular.  A fonte original dos textos publicados por Sarney segue sendo o jornalismo maranhense.

A colonização cultural não vem sem a colonização política e econômica. O principal apadrinhado político de Sarney é Davi Alcolumbre (União). Também ex-presidente do Senado, ele é atualmente o político local de maior influência nacional. Destinador de emendas e verbas para manter seu apoio político, Alcolumbre segue o caminho do tutor e reconhece a importância da colonização pela cultura e pelo imaginário. Os recursos do seu gabinete sustentam, no Amapá, a Nagib Comunicação e Marketing LTDA (10.278.118/0001-30), propriedade de Naiara Patrícia Barbosa Richene e Francisco Nagib Amin Richene Junior. No ano de 2023, a empresa empenhou 12 notas fiscais totalizando R$ 310 mil para sustentar a família Nagib, uma das responsáveis pela campanha de Alcolumbre no Amapá. Os valores públicos são empenhados como “divulgação de atividade parlamentar”, fora do período de campanha, diretamente ligados ao gabinete do senador.

O mesmo método é utilizado pelo senador Lucas Barreto (PSD). Junto com Alcolumbre, Barreto compra apoio local, ou pelo menos o silêncio conivente, de Sales Nafes que se apresenta como jornalista. O blogueiro é conhecido nas redes sociais pelas notícias policiescas e populares, mistura textos escritos por pastores neopentecostais e entrevistas feitas com delegados. No seu site, chamado de “portal”, há publicidades diversificadas, mas sempre ligadas às instituições públicas (prioritariamente: governos, ensino e companhias públicas). Em 2023, S Nafes M Da Silva Junior (18.827.227/0001-70) empenhou 23 vezes em nome de dois senadores. Cobrados, os amapaenses dispenderam R$90 mil em recursos públicos para sustentar o site; Barreto com 12 empenhos e Alcolumbre com 11; a emissão de notas variou entre R$ 2mil e R$8mil. O jornalismo local inexiste com a prática. Nas concessões públicas de rádio e TV, os políticos e os governos são os principais protagonistas, divulgando políticas públicas, obras e, especialmente, eventos.

 

3.               A concepção da ordem jurídica na colonização cebola

A maior empresa que já existiu no Amapá chamou-se Icomi, a Sociedade Brasileira de Indústria e Comércio de Minérios de Ferro e Manganês. Diante das multinacionais estrangeiras vencedoras da licitação (Hanna Coal and Ore Corporation), prevaleceu o lobby do mineiro Augusto Antunes em 1947. Ele recorreu ao próprio presidente Dutra com um discurso nacionalista e liberal e iniciou a prospecção do minério de manganês na localidade de Serra do Navio no ano seguinte. A Icomi tinha também a preferência de Janary Nunes (primeiro governador do território e irmão do já citado Coaracy). Apesar da aproximação dos políticos locais com o trust estrangeiro, prevaleceu o patrimonialismo da família Nunes com a industrialização nacionalista, com aspectos pouco liberais e, como veremos, nada republicanos.

Mesmo com o fim do Estado Novo, Janary havia visitado, anos antes, a sede da Icomi em Belo Horizonte. O discurso desenvolvimentista nacional durou pouco tempo: em 1949, a empresa uniu-se a estadunidense Bethlehem Steel Company. Em meio a incerteza do governo Dutra sobre a participação estrangeira nos recursos naturais do Brasil, a disputa entre liberalismo e republicanismo ficou latente; a natureza jurídica da empresa, nesse cenário, operou na incerteza jurídica do primeiro ao último dia.

A rota mais movimentada da Amapá na segunda metade do século passado foi a estrada de ferro entre Serra do Navio e o porto de Santana. Hoje abandonada, a ferrovia serviu para a Icomi transformar Serra do Navio em uma cidade fantasma. A vila operária do município é hoje a segunda estrutura arquitetônica tombada como patrimônio material pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Estado. Em abril de 2010 o tombamento foi oficializado, mas Serra do Navio não compete em atenção turística ou imponência com a Fortaleza de São José de Macapá, na orla do Rio Amazonas, em Macapá. Mesmo assim, Serra do Navio existe sem acesso asfáltico, e praticamente todos os prédios construídos pela mineradora nas décadas de 50 e 60 na Vila de Serra do Navio foram tombados; as edificações estão hoje abandonadas ou servem de moradia aos “filhos e netos” da Icomi.

A contaminação do lençol freático, igarapés e rios com ferro, arsênio e manganês veio acompanhada pela principal “atração turística” do interior do Amapá: as chamadas lagoas azuis. Atualmente, parte da população local sobrevive de pousadas, restaurantes e excursões em um “turismo de selfie”. A quantidade de minérios na formação das lagoas que ascendem das antigas escavações traz imagens de águas translúcidas, foco das lentes dos visitantes. Os turistas eventuais adoram. Carreatas de amapaenses e turistas de outros lugares (incluindo guianeses e franceses) se dirigem ao hoje município de Serra do Navio por estradas esburacadas. Alguns fazem tracking pelas matas e passam pelas ruinas das plantas industriais da Icomi, acampando no alto da montanha do que foi a mina do quadrante F12. Diante de uma lagoa azul e com temperaturas mais amenas, os turistas acompanham o nascer do sol, em meio a neblina, inexistente nas regiões de planalto, distantes da serra.

Mesmo com o trabalho hercúleo do Iphan, inúmeras intervenções inadequadas foram feitas em prédios tombados, especialmente nas residências utilizadas por moradores. Restaurantes improvisados e pousadas surgiram para atender a nova demanda. Os restos de Serra do Navio que não foram levados do Amapá subsistem em montanhas de minério de ferro, tanto lá quanto nas margens do porto de Santana. Vinte anos depois do fim da extração, em 2017, a Justiça Federal autorizou a empresa a redestinar o estoque; 5% do valor arrecadado com as vendas devem ser colocados em um fundo da Câmara de Conciliação que adjudica o prejuízo em benefício do município de Serra do Navio.

A concepção liberal como orientação da ordem jurídica fracassou duas vezes: quando a Icomi passou na frente das multinacionais e depois filiou-se a uma delas, e quando ignorou o passivo ambiental abandonado no interior do Amapá. No final dos anos 50, os trabalhadores terceirizados, especialmente para instalação da planta industrial comprada com os americanos, se reduziu a pouco mais de 200. A empresa que teve um auge de 1200 funcionários contratados, foi perdendo a receita das commodities o início dos anos 80, quando africanos e asiáticos despejaram manganês no mercado internacional; o produto se desvalorizou. A bancarrota total veio em 1998 quando o último contrato de trabalho direto com Icomi foi rescindido. A estrutura de terceirizados subsiste especialmente com serviços de zeladoria e vigilância.

A colonização do território pelas vidas do direito não parece ter garantido uma concepção liberal suficientemente sólida para orientar a ordem jurídica no caso do Amapá.

 

4.               O cidadão paraense, primeira camada da cebola, colonizador e colonizado

Ao falar dos primeiros políticos amapaense, passa-se a impressão de que a colonização vinda do estado do Pará é tão unilateral quanto a fronteira com a Guiana Francesa, para proveito só de um. No entanto, o Amapá possui um elemento constrangedor e inflacionado desde a institucionalização do território em 1943, a forte dependência do poder público como empregador ou gerador de força e renda. Com o fim do território e o surgimento do Estado, enquanto Unidade da Federação, manteve-se o relacionamento do Amapá, especialmente da região metropolitana de Macapá e Santana, com a maior divisa natural de dois territórios brasileiros: a foz do Rio Amazonas. No outro lado do rio, o chamado ABC do Marajó (Afuá, Breves e Chaves) é uma complexa teia de corredores marítimos em meio às ilhas do maior arquipélago fluvial do mundo, o Marajó.

A maioria dos cidadãos brasileiros habitantes das ilhas também estão de costas para o poder político do Estado do Pará. Com o fim do território, o Amapá se tornou o centro comercial e de assistência dessas pessoas. O maior consumidor de farinha, açaí e consequentemente fornecedor de serviços públicos para as ilhas do Pará é o Amapá. Muitas comunidades afastadas da sede de seus municípios não possuem escolas públicas de Ensino Médio. As turmas aglutinam alunos por idade; e enviar um filho para estudar em Macapá ou Santana é economicamente mais racional do que o enviar para a sede do município.

A cidadania marajoara é compartilhada com o Amapá no sentido cultural e comercial. Hoje a rota mais movimentada do Amapá é pelas águas: na circulação de barcos, navios e embarcações menores em direção às ilhas do Pará, especialmente Afuá, e vice-versa. A massiva injeção de dinheiro público em shows e eventos nacionais, especialmente, pelas prefeituras em anos eleitorais, traz visitantes que muitas vezes passam apenas uma noite em Macapá e retornam em viagem de duas horas para a “Veneza Marajoara”.  A movimentação contrária também é latente. Sem estrutura turística, com poucas pousadas e apenas um hotel com 15 quartos, o Afuá vê sua população de 37 mil habitantes triplicar no Festival do Camarão. As pessoas acampam em redes, nos pátios e praças e especialmente dentro das embarcações, com o mesmo objetivo: acompanhar shows e circular pelo evento.

A cultura musical mais difundida na região é o tecno-brega. Versões abrasileiradas de músicas internacionais de sucesso, distorção na voz dos cantores (e especialmente cantoras) são as únicas regras sem variação: tanto no Amapá quanto no Afuá, existe uma ojeriza pelo silêncio. O sucesso artístico na maioria das vezes depende mais da cor e do tamanho do equipamento que da popularidade da música que toca. A aparelhagem se sobressai em tamanho e ornamentação, com luzes de led e pinturas vibrantes contrastando com a calma na qual a maré de altera. No Afuá, as caixas de som que são carregadas pelas bicicletas muitas vezes têm um valor comercial maior que o próprio meio de transporte. Trata-se do único município do Brasil onde carros e motocicletas são proibidos por lei municipal, pois a cidade inteira existe em área de pontes, dando exclusividade de transporte por tração humana.

As noções gerais de cidadania funcionam sem a institucionalização da liberdade pública da maneira mais literal possível, a informalidade. Inexiste perturbação do sossego quando portas não precisam ser trancadas ou o são como simulacro da burocracia. A responsabilidade civil toca apenas o limite do dano. Casamentos, relações de trabalho e responsabilidades familiares são menos institucionalizadas que qualquer evento de tecno-brega ou o horário de baixar o volume para permitir que idosos e crianças durmam.  

 

5.               Considerações finais

Percorremos assim três exemplos que tratam do problema do liberalismo e da tensão acumulada com o republicanismo. Nesse sentido, cidadão, direito e processos políticos funcionam em meio a uma colonização bastante peculiar, com aspectos que coincidem com o de países que passaram por revoluções liberais, mas esbarra em um cenário de contradições internas muito particulares. Vemos assim que a cidadania não é necessariamente, como apregoava Habermas, um novo ator coletivo, apenas incorporando noções de solidariedade – forçosamente – diante da interação social acumulada, como maneira de controle social pelo poder administrativo. A institucionalização da cidadania, neste aspecto, não toca necessariamente a teoria liberal exigida no ambiente público, pelas regras advindas de uma concepção republicana de sociedade. O poder público serve apenas como assistencial, podendo se dar ao luxo de ignorar a sociedade em absoluto quando o assunto for a tentativa de mediação.

De maneira nada liberal, também se observa que a esfera dos direitos fundamentais e do estado de direito não interagem com a articulação da opinião em vontade comum (republicana). Da mesma maneira que o modo de viver da economia insustentável preconizado no passado, o Amapá volta a agenda nacional do direito apenas quando fracassarem as condições de conciliação. Discute-se, assim, apenas a tensão entre capital desenvolvimentista e “benefícios” sociais que nunca chegaram ou chegarão, como no caso das especulações em torno da extração de petróleo na foz do Rio Amazonas, pauta nacionalizada que vem importada pelos políticos locais instalados em Brasília. Trata-se da questão no Amapá como “último recurso” para desenvolvimento do Estado; mente-se deliberadamente sobre os benefícios para a população local; e a solidariedade transforma-se em uma agenda dependente da administração pública e não da sociedade civil organizada. A concepção liberal pode, mais uma vez, orientar parte da ordem jurídica, mas não se sustenta em meio as práticas não-republicanas.

Da mesmíssima forma o processo político não terá condições de consolidar a esfera pública aprimorando o mecanismo da democracia deliberativa sem algum grau de independência da informação. A comunicação pública não tem uma sustentação orientada para o entendimento, quando comprada pela massa de políticos e especuladores.  

Em resumo, não parece haver nenhuma condição material para ultrapassar o discurso ético através de concepções políticas valorativas como as estudas. Cidadão, direito e processo político servem muito para aqueles interessados em respostas fácies para questões difíceis, mas a eticidade da comunidade e os direitos dos homens seguem vulneráveis a ataques. Contamos assim, apenas, com as alternativas marginalizadas, seja pela falsa promessa desenvolvimentista, seja pelo projeto permanente de gradualismo nas alterações de base econômica. O modelo de democracia deliberativa, como vimos, não pode ser usado como alternativa às alterações graduais que o Brasil tem de modelo desde sua colonização, pelo contrário, podem ser reinterpretados como traumaticamente gradualistas.

 

6.               Referências

HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, v. 2, n. 3, p. 105-121, jan./jun. 1995.

HABERMAS, Jürgen. Modernidade: um projeto inacabado. In: ARANTES, Otília B. Fiori; ARANTES, Paulo E. Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. Editora Brasiliense: Brasília, 1995.  

HABERMAS, Jürgen. “Notas sobre o conceito de ação comunicativa”. Trad: Mauro Guilherme Pinheiro Koury. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, pp. 1-25, abril de 2015.

G1, AMAPÁ, Amazônia. Canoa com mais de 20 pessoas naufraga na costa da Guiana Francesa < https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2021/09/03/canoa-com-mais-de-20-pessoas-naufraga-na-costa-da-guiana-francesa-um-corpo-foi-resgatado.ghtml >, 3 de set. 2021, acessado em: 25 de jun. de 2024.

PASSOS, Delaíde Silva. A Icomi e a exploração mineral no Território Federal do Amapá. Anais: XII Congresso Brasileiro de História Econômica & 13ª Conferência Internacional de História de Empresas. Assoc. Brasileira de Pesquisadores em História Econômica: Niterói, 2017.

sábado, 11 de maio de 2024

A primeira coisa a se reconstruir é a História

O ditado popular que sugere a ideia de que a "primeira vítima da guerra é a verdade" tem um fundamento deveras incompleto. Explico. É preciso compreender que a primeira coisa a se reconstruir, após a destruição absoluta da geografia é a própria História. Foi assim quando a Alemanha, primeiro destruída, depois dividida, precisou convencer o mundo sobre a necessidade de se reconstruir. Os alemães que sobraram convenceram americanos e franceses que não restaria alternativa diante do estabelecimento de outra potência, a soviética. A História da Alemanha precisaria ser repetidamente contada, inclusive, pelo futuro da Europa, e criou-se um estado tampão, refreando os bolcheviques. 

Sepultou-se o ego alemão, já devastado pela guerra, mas inflado desde muito antes de Weimer, portanto, resistente ao cal jogado na cova. Toda História do idealismo alemão, agora um conjunto de anacronismos, foi colocada de lado. Fichte, Schelling, Goethe e Nietzsche foram solenemente abandonados e, até hoje, são eternos impraticáveis do romantismo, vistos mais como anti-iluministas do que como filósofos e literatos. Lixou-se a História da unificação da Alemanha, obrigou-se cada alemão nascido a partir 1945 a pedir desculpas, na certidão de nascimento. E ainda bem!

A mesma coisa vai acontecer com o Rio Grande do Sul, se quiser continuar existindo. 

Aqui, como na República de Weimer, a verdade já deixou de existir, alvejada. Convenceu-se o gaúcho de que o commodity agrícola faz mais parte da História do que índio, o negro e a pecuária. Fantasiou-se que o colono, retirante europeu, é antagônico ao sem-terra açoriano que fundou Porto Alegre no séc. XVIII, ambos impedidos de ocupar seus lugares no mundo, por conta de alguma guerra. Mentiu-se vergonhosamente e se criou um romance de cavalaria como se a única maneira de tocar o Rio Grande fosse sobre quatro patas. Hoje, pela piedade de historiadores como Tau Golim, se sabe que a existência do povo gaúcho dependeu mais da água, rainha absoluta do devir!, do que de carroças, cavalos e caminhonetes de péssimo gosto e nenhum desempenho. 

A bacia do Guaíba, talvez destruída para sempre, foi historicamente mais importante para as vitórias do nosso povo do que qualquer mentira resistente do positivismo, vivíssima dentro nos enfadonhos CTGs. Jacuí, Sinos, Caí e Gravataí foram os primeiros lugares onde se instalaram os sonhos do Rio Grande interiorano, urbano, industrial, colono e desenvolvimentista. Aqueles que hoje choram suas perdas não têm culpa sistêmica: vítima é vítima. Como na alegoria de Weimer, o crime é montado para que a culpa seja pulverizada. Encontrar os culpados não é uma tarefa simples, mas necessária na reconstrução da História.

Para encontrar aqueles que devem ser julgados e condenados será necessário reescrever a História e, com a reescrita, se observará a coincidência de que aqueles que reclamam "não é o momento de encontrar culpados" são os culpados. Com a História recontada, se descobrirá que o elogio comprado pelo jabá do sertanejo universitário nas rádios nunca foi voltado para a pequena-propriedade; e que há mais chances de encontrar terra debaixo das unhas do povo gaúcho do que debaixo dos pés. Se descobrirá, ainda, que soterrar o pantanal e derrubar a amazônia pode fazer o agro pop, mas é o agro dos outros, e para o pampa pobre restará lama e entulho, quando - e se - a água baixar. 

É preciso recontar a História do Rio Grande do Sul, perseguir todo rescaldo de positivismo e resistência ao iluminismo, decidir se nossa bússola é a razão, a ciência e a indústria ou o opúsculo da nossa própria história. Quando transformamos cidades inteiras em reservas de resistência e homenagem aos mortos, incorporarmos os cavalos sobreviventes ao quadro da Brigada Militar e trocarmos a imagem mítica e importada do gaúcho como um centauro por um índio em um barco, finalmente teremos alguma chance. 

Assim como o idealismo alemão foi eficiente em formar sua legião de anti-iluministas pela violência e pela força, dispensando a liberdade da razão, talvez não tenha nos restado alternativa que a imitação dos nossos antepassados colonos, negros e índios. 

sábado, 16 de setembro de 2023

Professora da UNIFAP com tornozeleira eletrônica

Verena Lúcia Corecha da Costa terá uma biografia e tanto para contar em seu livro de memórias. Ela ingressou no magistério público federal na Universidade Federal do Amapá em julho de 2021. O término do contrato só se deu em agosto de 2023. Legalmente, tudo certo, professores substitutos (sem concurso público) exercem cargos temporários de no máximo 2 anos.

O detalhe é que Corecha saiu da cadeia em 22 setembro de 2022. A 1º Vara Cível Criminal de Macapá converteu a prisão da advogada em regime domiciliar com monitoramento eletrônico. A professora da UNIFAP foi presa em 14 setembro de 2022 numa operação denominada Queda da Bastilha, da Polícia Federal. Ela foi parar no xilindró junto com um delegado da polícia civil, Sidney Leite, e os também advogados José Antônio Marton e Ana Karina Guerra. Todos acusados pelo Ministério Público Federal por envolvimento em facção criminosa atuante no Estado. Entre as acusações: tráfico de drogas, associação para o tráfico, organização criminosa, corrupção ativa e passiva, prevaricação, falsidade ideológica e lavagem de capitais.

No inquérito, a Polícia Federal evidenciou um esquema para evitar a instalação de tornozeleiras eletrônicas em detentos liberados para o regime domiciliar. A defesa da professora da UNIFAP argumentou que Corecha tem “um casal de filhos pequenos”. O juiz da Vara Criminal de Macapá permitiu a tornozeleira, “devendo a requerente permanecer em sua residência localizada no bairro do Trem", na mesma capital. De fato, Corecha residia em setembro de 2022, no Bairro do Trem em Macapá, mas a UNIFAP a contratou como professora no campus Binacional do Oiapoque, a mais de 570 quilômetros da Capital.

Nesta semana, Verena Lúcia Corecha da Costa foi aprovada como primeira colocada na fase inicial do concurso público para provimento de cargo para professor efetivo do magistério superior na UNIFAP. Como professora substituta, ela recebeu, entre julho e fevereiro de 2023, salários em torno de R$3600 para ministrar aula aos alunos do curso de Direito da UNIFAP. Se for alçada em concurso público para cargo de professora efetiva, com estabilidade funcional vitalícia, o salário passa para mais de R$5mil. A segunda fase do concurso acontece neste domingo.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

UNIFAP: mais um concurso que vai virar água


A Universidade Federal do Amapá aproveitou mais uma oportunidade de passar vergonha. No último dia 10 foi realizado, em meio a tumultos em salas, falta de provas impressas em envelopes e bate-boca entre comissão executora com candidatos o concurso público 07/2023. O certame está destinado a selecionar professores para o Campus Oiapoque – binacional e Santana. Numa das vagas, marcada para o curso de Direito, Luana Castelo Branco Barros, irmã do vice-coordenador daquele mesmíssimo curso foi pontuada com média de 9,17, acima de mestres e doutores, que participaram do quadrante, vários deles desclassificados por não terem feito uma boa prova. Luana não tem experiência acadêmica, não tem títulos acadêmicos, além da graduação em Direito e uma especialização, mas é irmã de Tancredo Castelo Branco Neto, e está com processo de contratação aberto na própria UNIFAP para o cargo de professora substituta (temporária). Seu irmão, foi nomeado vice-diretor do curso de Direito em outubro de 2022. A coordenadora do curso Cindi Veridiana de Almeida Pinheiro está na banca de Luana.

Na manhã desta quarta-feira, divulgados os resultados provisórios do concurso, a UNIFAP teve uma enxurrada de recursos administrativos protocolados a respeito do mesmo certame em outras vagas. Numa delas, também destinada ao curso de Direito, Verena Lucia Corecha da Costa encontrou um lugar de destaque em meio a advogados experientes, mestres e até doutores. A candidata foi professora temporária no curso de Direito da UNIFAP, também no ermo campus Binacional do Oiapoque, sua única experiência acadêmica. Ela alcançou nota 7,17, em primeiro lugar. Em redes sociais, ela se apresenta como “professoras universitária, especialista em investigação criminal”, mas esquece de mencionar a UNIFAP.

Existem bons motivos para o concurso terminar judicializado pelos candidatos que entraram com recursos. Eles pedem a suspensão de bancas em virtude de um vício administrativo de origem: a Comissão de Operacionalização do Processo Seletivo (COPS), portaria 1472/2023, assinada pelo pro-reitor Christiano Ricardo dos Santos, indica seus próprios membros como avaliadores nas bancas. Entre a comissão que trabalhou no dia da prova e as bancas avaliadoras, nomes se repetem: como o do professor Antonio Sabino da Silva Neto e Jose Caldeira Gemaque Neto, ambos professores de direito originários do campus Binacional do Oiapoque. Ou seja: num dia os professores estavam manuseando provas e administrando salas com dezenas de candidatos, no outro lendo as provas e aprovando colegas em concurso público para professor efetivo. O edital exige que as avaliações sejam lidas de maneira “cega”, sem que os avaliadores saibam de quem são as provas que estão manuseando.

A prova didática que confirmará as vagas do concurso deve acontecer no próximo domingo. A UNIFAP não abre turma para o curso de Direito do Campus Binacional há 4 anos, alega falta de professores.

sábado, 2 de setembro de 2023

Carta ao Reinalo Azevedo, sobre o assunto mais chato da filosofia política: devemos silenciar um silenciador?

Seu trabalho hoje é o mais apodítico do jornalismo opinativo nacional. De fato, são poucos em condição de fazer mea-culpa para uma categoria como as dos jornalistas e levo em conta que aqueles que vem desempenham essa função estão beirando as raias da indigência. Mesmo que o papel de ombudsman da imprensa toda seja um papel deveras abstrato, reconheço-o quase que exclusivamente no senhor. Dito isso, notei, com várias audiências de seu programa, um profundo apreço pelo, assim chamado, “paradoxo da tolerância” do Karl Popper. De fato, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos é uma das grandes obras primas do pós-guerra. Apenas, a li com muito cuidado pelo seguinte: Popper é um epistemólogo e, na Filosofia, a genialidade do problema da Liberdade é tão amplo que pode ser adotado por quase todos os ramos dos conhecimentos filosóficos. O que me parece acontecer é que eu, e acredito inclusive o senhor, coincidimos na análise da questão da Liberdade pela filosofia política, com seus vieses sociais e, inclusive, bem delimitados por Rawls, Arendt e o velho I. Berlin. Daí decorre que temos vantagens que o pessoal da epistemologia não tem. E Poppper não pareceu ter. Não precisamos, diferente deles, nos preocupar com a liberdade da necessidade, ou da vontade, somos herdeiros de uma liberdade utilitária tal qual Mill, sem arrastar asas para a liberdade positiva de Kant a todo momento. Podemos, com naturalidade insistir com nosso interlocutor que estamos falando de liberdade no sentido de ausência de impedimentos e mantemos o assunto sobre controle.

Mas não lhe escrevo para falar das coisas com as quais concordamos. O caso é que, como homem da epistemologia, Popper fez um livro de epistemologia para filósofos políticos. Sua grande crítica, me parece, é identificar os inimigos da sociedade aberta como aqueles atrelados a um tipo tacanha de neo-platonismo, uma filosofia política que pudesse ser realista “como se” se relacionasse diretamente com o Mundo das Ideias, o fim da história, uma utopia realista (com o perdão da necessidade do termo absurdo). Creio que essa seara só pode ser entendida com mais vagar e calma em um texto do Habermas, sobre a “Modernidade como projeto inacabado” (também famosinho no problema da exigência que apenas a chamada pós-modernidade trouxe: consertar a sociedade, sem poder pará-la, como se conserta um barco que não pode nunca ser levado para o porto ou ancorado).

Pois bem, Popper não acreditava, creio eu, no paradoxo da tolerância da forma como ele ficou famoso e distribuído na internet através de meme. Não acredito que ele tenha se preocupado com o tema como um politólogo o faz. Logo, a resposta ao problema não é “a tolerância irrestrita leva a sociedade à movimentos totalitários, intolerantes por sua natureza política. Evitemos isso a todo custo”. Essa me parece ser uma resposta objetiva e realista do ponto de vista da relação entre Política e Mundo das Ideias. Platão a deu para criticar a democracia, reconhecendo que um dos problemas da massa poderia ser a agressão de indivíduos que dela discordassem. As variantes do problema são reapresentadas por Tocqueville e até por Mill e se estabelece assim a recomendação indelével da preservação da consciência individual, diante da multidão de autocratas.

Em Popper, outrossim, o paradoxo está em uma nota de rodapé do livro e lá, pasmem, Popper é muito mais utilitarista do que Mill jamais foi! A alegoria que Popper repete, na minha opinião, é muito parecida com aquela do autor londrino na obra Sobre a Liberdade. Só para contexto: lá, Mill vai nos limites das vias de fato quando resolve “limitar” a opinião de um grupo de disruptivos, traduzo:

 

Não se pretende que as ações devam ser livres como as opiniões. Ao contrário, as opiniões sempre perdem sua imunidade quando as circunstâncias nas quais elas são expressas são tais como as que constituem sua expressão uma instigação positiva a algum ato permissivo. Uma opinião de que negociantes de milho são inimigos dos pobres, ou de que a propriedade privada é pilhagem, deve ser imperturbável quando apenas circula entre a imprensa, mas pode justificar incorrer em punição quando oralmente proferida para excitar uma insurgência montada diante da casa de um negociante de milho, ou quando dirigida em meio à mesma insurgência no formato de um cartaz (CW XVIII:260).

 

Peço desculpas pela tradução. “Mob” não é uma mera “insurgência”, está mais para um grupo de bandidos, mafiosos, mas vendo e revendo, não encontrei outra forma de traduzir.

Observado isso, mais uma fez, tento fazer o que também o vejo fazer no seu programa de rádio: distingo a razão da Modernidade da balbúrdia dos pós-modernos. Entendo que opiniões radicais, controladas dentro da minha sala de aula na universidade ou em debates controlados pelo senhor na emissora de rádio ou jornais, não se equivalem a grupos de mafiosos plantados propositalmente na frente de quarteis. Noto que uma opinião organizada sobre desobediência civil, tiranicídio ou defendendo pena de morte expressa em um evento civilizado é algo muito diferente de um (deus nos perdoe!) podcast do Monark!

Escrevo-lhe sobre isso porque gostaria de lembrar que não me parece que Popper saiu criticando o mero movimento dos intolerantes que, sim, deve ser combatido pela sociedade civil. Popper, de fato, parece ter sido deveras tolerante com os intolerantes, quando escreveu o seguinte sobre a República:


 

Diante do chamado paradoxo da tolerância, o rancor de Platão à democracia talvez nunca tenha sido mais bem exemplificado: é o reconhecimento da contradição interna de que a democracia nos leva com mais facilidade à tirania do que qualquer outra forma de governo conhecida pelos gregos. Não faz parte do projeto platônico a liberdade como sendo o reino da eterna vigilância. Não cabe ao grande filósofo do Mundo das Ideias fazer compreender que o processo paradoxal da democracia é de fato só paradoxal mesmo; e daí? Ele excluiu o caminho sem o cogitá-lo, fiel a República como o espaço do perfeitamente justo. Seriamos nós capazes de não reconhecer que as pistas já estavam lá, justamente quando Platão, na República, fala de Justiça. Popper não é anti-platônico num sentido tão simples que pode ser reduzido ao paradoxo da democracia. Justiça nas sociedades modernas é algo mais amplo do que “dar a cada um o que lhe compete”, estar de acordo com o melhor para o Estado, ou como prefere Popper (deste vez, não em nota de rodapé, mas no corpo do texto, pág. 103): “igual distribuição do ônus da cidadania, isto é, das limitações de liberdade que são necessárias na vida social”. Popper, moderno tal qual Kant, é o primeiro a reconhecer que a liberdade, assim como o voo da pomba depende justamente daquilo que o limita: o ar sem o qual o voo não seria apenas dificultado, mas impossível. Nem pombas voam no vácuo; nem democracia funciona sem tolerar intolerantes em um grau que torna nossas vidas insuportáveis.

“Não quero implicar que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia”. Popper reclama o direito de não tolerar os intolerantes muito antes do patrimônio público ser atingido pelo terrorismo, mas – para criticar Platão! – foi deveras tolerante com os intolerantes, pois foi um moderno em meio a uma pós-modernidade já instalada. Tal qual teus antecessores e sucessores, liberais como gostamos de ser, Popper apostou num iluminismo que chamava a razão aqueles apegados à deia de liberdade abstrata anterior à modernidade, ou como lembrou Habermas: não basta o ódio de Platão a democracia, o projeto de burguês pós-moderno nega a modernidade, sugere uma volta “conservadora” a um mundo que não existe mais, onde ele não era apenas burguês como projeto. Popper foi antes de tudo uma pedra angular protegendo a democracia em uma arquitetura completamente platônica, idealizada, perfeccionista no narcisismo tanto dos intolerantes quanto daqueles dispostos a sair por aí consertando o mundo.

Desejo saúde eterna e sobriedade perene.

Obrigado pelo seu trabalho.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Paradoxo de Shimo

Confesso que a ideia original deste texto veio do Rogerio Skylab, mas como sou amigo do Shimo, dou-me o direito de batizar do jeito que eu quiser. Assim como o Elton Schmorantz não tem celular, pelo menos não um aparelho destes conectados à internet, recentemente, Skylab deu uma entrevista explicando sua preferência por não estar conectado: o faz cumprir acordos de maneira pontual e evitar desculpas para não cumprir acordos. 

Na semana passada eu encontrei um outro jeito de confirmar que o paradoxo de Shimo, andar pela rua desconectado, pode ser algo produtivo. Questões relativas ao trabalho. Eis o que fiz: contei os últimos 50 contatos feitos pelo whatsapp e separei os diálogos nas seguintes categorias. 

 

Valor total

O contato existiria se a pessoa não tivesse contato comigo pelo whatsapp, por outros meios?

A demanda não existiria se não fosse o whatsapp.

Contatos ou conversas pessoais

19

É só conversa pessoal, sem possibilidade de encontro físico: 16.

Daria para se reunir e tomar uma cerveja: 3.

Contatos ou conversas profissionais.

31

Se precisasse enviar a demanda por e-mail ou telefonar a demanda não existiria: 29.

Urgente urgentíssimo, o whatsapp foi a melhor opção: 2.


Como vocês podem perceber, essa enquete que fiz comigo mesmo confirma uma coisa importantíssima do paradoxo de Shimo: os problemas não são criados pelas pessoas. Pelo contrário, na maioria dos casos, as demandas profissionais seriam resolvidas com mais facilidade pelo demandante se o obrigassem a enviar um e-mail para recorrer a mim. Ou seja, as pessoas são inclinadas a entrar em contato pela facilidade que o aplicativo traz para exteriorizar os seus problemas. 

O Brasil é um lugar de epistemologia especial. Áudio por whatsapp, conversas prolixas e sem sentido e memes são coisas bem brasileiras. É impossível imaginar um lugar onde essa epistemologia se manifesta como o espaço razoável para o trabalho. Um cara com o meu perfil profissional acaba sendo demandando como se fosse um pizzaria para fazer pedidos enquanto o demandante pensa no que quer pedir, sem saber exatamente o que quer ou sem ter condições de pedir um sabor especial mais caro, porque ouvirá um "não faço; faça você". Quando essa mesma percepção é levada para grupos em aplicativos de conversa, a coisa ganha uma dimensão ainda maior. Egos são expostos publicamente, ficam vulneráveis e a fraqueza da sociabilidade fica ainda mais evidente.  

Coaduna com minha pesquisa do instituto "tirei do cool", a percepção geral de colegas e amigos: "estou muito cansado"; "tenho a impressão de que faço tudo sozinho". É o que ouço de todos que trabalham e precisam usar para algum tipo de atendimento ou demanda o whatsapp. Todos atendentes de pizzaria. 

O que quero mostrar alguém razoável já percebeu: as pessoas estão trabalhando não para cumprir demandas, mas para atender as necessidades movimentadas pela ansiedade daqueles que usam essas ferramentas de comunicação com coisas que jamais seriam problemas meus se fossem problemas reais de quem procura uma solução. 

Espero que o Shimo leia isso e continue uma inspiração para quem quer abandonar a comunicação pueril. Ele nos mostra que é possível usar a internet e a comunicação de redes sociais de maneira sadia, evitando trabalho, retrabalho e confrontos desnecessários, porque inexistentes na materialidade. 

Um tópico final é sobre a percepção óbvia de que as demandas são movimentadas por pessoas desinteressantes, preguiçosas e isso deixa em alerta e sobrecarga indivíduos com algum tipo de tendência a pro-atividade. O que não pode ser medido é a inteligência emocional (e social também) daqueles que rejeitam a sobrecarga. Com um grupo gigantesco de ansiosos, ficamos parecemos ludistas, olhamos para a máquina e falamos mentalmente com os parafusos do sistema: "calma lá, amigo! Se a demanda poderia ser passada para sua secretária, não ranja seus dentes diretamente comigo". Nessa espuma que a onda levou, ignorar um pedido é muito mais custoso do que pensar em como resolver o problema; mostrar que a pessoa poderia resolver o que pretende sozinha se transforma numa afronta equivalente a uma ofensa a todo tipo de inteligência, principalmente as mais limitadas. 

Ultimamente, descolei da minha experiência frase prontas do tipo: "não faz parte da descrição da minha função lhe entregar isso organizado da maneira que você quer"; "no sistema da universidade você encontra essa informação usando seu número de matrícula e pesquisando nas abas"; "essa demanda vai entrar em uma fila enorme de e-mails, portanto, manda-me um e-mail que eu analiso a real necessidade de alterar a ordem de importância do que você está me pedindo para compará-la com as outras necessidades e prazos"; "posso atender seu pedido, se você me enviar o que precisa minutado para que eu insira na próxima reunião". 

E o que acontece? As pessoas desistem de que aquilo é um problema, encontram outra forma de resolver por conta própria, assistindo um tutorial no Youtube ou se zangam comigo. Normalmente, as três coisas ao mesmo tempo. 

O paradoxo de Shimo não exclui a internet ou as redes sociais da vida das pessoas, apenas ensina que não somos secretários uns dos outros. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Quem ganhou foi Lula; quem venceu foram os anos 90.

64, 66, 68, um mau tempo talvez
Anos 70, não deu pra ti
E nos 80 eu não vou me perder por aí...

[Horizontes, Bailei na Curva, Flávio Bicca Rocha]


Quem venceu as eleições foram os anos 90, ou o espírito que os formou, com todos os seus erros e acertos. A divisão do país não foi gestada nos 90, lá estávamos sendo apenas criados, porcamente educados de maneira irrestrita e ampla, pela primeira vez, vimos a expansão real da educação coadunada com o desejo de trabalhar e progredir, sem divisões. Pela primeira vez, desde os anos 50, houve a oportunidade de enxergar uma realidade não-inventada, completamente dependente de nós mesmos. Não tenho dúvida que as futuras gerações olharão para os anos 90, como olhamos para os 50 e pensarão: "parece que foi a última vez que tivemos uma chance". 

As viúvas de um período que não viveram não são muitas, nem a maioria, não provocam um empate ou uma "divisão" por dois do Brasil. A realidade inventada da divisão é proposital. O mapa acima mostra, justamente, que a divisão não veio dos anos 90, foi amplificada pela incapacidade de uma parcela coadunada e captada para não aceitar o que nos educou e criou. Pelo contrário, mostram que foi gestado um buraco entre o Brasil do presente e do passado. Um buraco gigantesco, olhado com estranheza pelos mais atentos em economia e social, esse buraco gigantesco venceu, é o Merthiolate arde para nos curar. É a frustração da escolha que foi nossa e precisamos reconhecer como nossa. Quem venceu foi a banheira do Gugu, os Mamonas Assassinas, Bebeto e Romário. Nossas viúvas são jovens e idosos, não são pessoas que tenham de fato passado pelos anos 90 e entendido que se tratava de uma ironia da história nos cobrando responsabilidade e frustrações pelos nossos erros. A ideia de liberdade resiste aos anos noventa, apenas porque, sim, existe uma parcela inventando a possibilidade de sermos irresponsável, como éramos antes dos anos 90. Sequer o poderoso sentimento de liberdade nos divide.  

Finalmente, todos os brasileiros foram obrigados a aprender a se frustrarem. Nem todos conseguem absorver a lição, mas ninguém consegue ignorá-la, porque ninguém, antes, ofereceu essa oportunidade para os brasileiros, agora, sim. É necessário um homem pequeno, diminuto e imoral para o maior elogio que a liberdade irresponsável já viu. É necessário transformar a liberdade irresponsável em ignorância orgulhosa. Foi necessário a idolatria para chegar à frustração. A mediocridade, como autodefesa da realidade não-inventada, precisa dar lugar a frustração. Inventa-se micro-realidades, para atender a demanda. 

Por certo, que o medíocre não é o único que se frustra, mas é o único que não reconhece a frustração como um objeto interno a ele mesmo. A frustração do medíocre não vem como vem a derrota de uma pessoa normal, precisa ser transferida às esferas mais baixas entre seus pares. As massas de medíocres se insurgem para defender o único, entre eles, que catalisam como responsável pela realidade. A marca indelével dessa transferência de responsabilidade não é uma marca característica dos anos 90, mas todas as outras características se mostram um pouco maiores, a ponto de vencer um passado irresponsável. 

Fundamentalmente o que vimos foi uma vitória dos anos 90. Aqueles que reclamam "empate" apenas delimitam o acerto. Foi nos anos 90 que os medíocres aprenderam que empatar é pior do que perder: um esforço muito maior precisa ser empregado pelo derrotado para chegar, absolutamente, no mesmo lugar que chegaria se já se declarasse um mísero derrotado por cansaço. Os anos 90 triunfaram sobre a mediocridade. 

sábado, 4 de junho de 2022

Guerra cultura: Brasil, uma batalha esquisita

Passei 25 dias lendo fanfic da extrema-direita, meu cérebro não derreteu, mas... 

O problema em termo da guerra cultural nasce de tensões estéticas e urbanas, estabelecidas especialmente a partir da pluralidade de recursos culturais. Nos Estados Unidos, o termo foi empregado por Robert Mapplethorpe (1946-1989), fotógrafo nova-iorquino que utilizou o termo para se auto-identificar em meio a tensão de críticas a sua própria produção com fotografias potencialmente eróticas. São três os campos de batalha da Guerra Cultural, desde então: religião, sexualidade e etnia. No Brasil, a própria perspectiva de tensão é frustrada. E eu vou tentar explicar porquê.


Por conta de inabilidade no trato dos problemas centrais, falta de comprometimento epistêmico com aquilo que de fato se defende, a guerra cultural no Brasil não foi ruralizada, como nos Estados Unidos, mas pouco se toca nos problemas que concernem a sexualidade e etnia diretamente. Os conservadores brasileiros preferem uma abordagem voltada para o conspiracionismo. As teorias da conspiração utilizadas por aqui não são divergentes daquelas das quais se aproveitam os escritores dedicados ao tema “Guerra Cultural” na América, mas possuem características especiais. Em primeiro lugar, a estética que é sugerida se transforma em algo não-rural ou de “desenvolvimento” urbano do interior. Em segundo lugar, por falta de uma estética conservadora no estilo “texas ranger cowboy”, as noções de família, raça ou mesmo o antissemitismo, marcas latentes destes escritores nacionais é fundamentalmente levada para uma religiosidade católica-conservadora, paralela ao neopentecostalismo latente da sociedade brasileira.

A expressão “guerra cultural” é utilizada para identificar o “debate público” sobre os três temas centrais sem se voltar diretamente para eles; sempre tratando indivíduos ou grupos no campo político “comunista” ou “anticominista”, tentando reduzir a isso a própria História, dentro da tensão política-cultural.

Os escritores que tentam se identificar com esse fator no Brasil possuem duas características em comum: Olavo de Carvalho como fonte primária de seus escritos; e pouco ajuste em referenciais diretos com as teorias da conspiração coirmãs norte-americanas. Essa observação não decorre apenas do fato natural da dificuldade que tais indivíduos têm com a língua estrangeira. Mais do que isso: Olavo serve como uma barreira estabelecida entre a estética rural-pentecostal americana e a defesa da tese geral de desmonte do ocidente pelo declínio do catolicismo. Este filtro evita que nossos “escritores conservadores” precisem aderir ao pentecostalismo em si, e permite que seu conspiracionismo caminhe em paralelo com os colegas brasileiros, movimentados por pastores.

É um atraso do conservadorismo brasileiro nos campos de batalha. Os americanos conseguem ser muito mais abertamente antissemitas, racistas, xenófobos e sexistas, pelo fato de suas teses da conspiração possuírem um pano-de-fundo descolado da tradição do catolicismo, no entanto, também há outros atrasos aqui:

i) a abertura política tardia (tal qual os totalitarismos europeus) manteve os problemas centrais da guerra cultural represados por mais tempo;

ii) lutamos uma “guerra contra o comunismo” por procuração, sem convite direto para a Guerra Fria, uma disputa sem custos militares e sociais diretos para o país; o conservador brasileiro é viúvo de uma guerra que não lutou ou sequer foi convidado para lugar;

iii) ausência de reconhecimento nacional, um país continental que não se reconhece como nação, abre espaço para patriotismo de coalisão, descompromissado com a identidade nacional, especialmente aquela do interior de sua própria terra; a preferência aqui é pela estética do agroboy americano.


A cultura artística e seus fenômenos na música e artes visuais, contraponto natural ao conservadorismo, nos termos da Guerra Cultural, teve pouca influência no interior do Brasil, quando comparado a mesma difusão, correlacionada a cultura nos Estados Unidos. Aqui, a ideia propagada de “marxismo cultural” é um fenômeno urbano, para esses “pensadores” do conservadorismo, nunca explicado de um Brasil interiorano ou contemplativo. A influência da repressão no interior do Brasil não se deu pela cultura que precisava ser administrada no eixo de produção relevante, Rio-São Paulo, mas chegou ao interior pela economia, pelo êxodo, pela fome, não pela cultura. No interior do Brasil as ideias nacionalistas coexistem com mais naturalidade com o racismo estrutural, com a mestiçagem étnica e sincretismo religioso; nas capitais com menos naturalidade e com mais truculência a cultura precisou ser preocupação do estado censor.
 A linguagem global de comunicação, de fora para dentro, do litoral para o interior, chegou muito mais tardiamente no Brasil que importava para a Guerra Cultural nos Estados Unidos, a estética contemplativa do agrário, da família nuclear, o campo onde o branco governa e o negro trabalha. Aqui não houve esse espaço de adesão.

Toda teoria da conspiração que é naturalizada no interior americano, precisa chegar ao Brasil pela esfera da religião; ali está, para nossos conspiracionistas, a destruição dos valores ocidentais e a religião resume aqui o problema da guerra cultural. Não em virtude disso, mas como consequência deste fator, o produto da produção das teorias conspiratórias aqui é pulverizado sobre uma gama de fatores geopolíticos internacionais, complicados de serem analisados por um personagem histórico que não enfrentou a guerra, mas se julga derrotado.

“As grandes religiões (catolicismo e islã), as famílias dinásticas (Rothschild, Rockfeller), as sociedades iniciáticas (monarquia e rosa cruz) e o partido revolucionário (o partido comunista)” são elementos históricos que para os conspiracionistas brasileiros resumem toda a história, os “atores-motores” responsáveis integralmente pelos caminhos comunistas traçados pela humanidade. Vale notar que todos eles são elementos de ordem religiosa, seja pela presença do judaísmo na citação direta a famílias tradicionais judias americanas ou pela presença do partido comunista, representando o ateísmo na política. O antissemitismo, quando utilizado em terras tupiniquins, por exemplo, é diferente daquele antissemitismo contemplativo americano, fundamentalmente anti-industrial ou como pedra de toque da comunicação distribuída massivamente ao interior. É um antissemitismo direto, apresentado apenas por meio da guerra cultural, na qual o ocidente é o derrotado.

Toda teoria da conspiração é apresentada para se adotar uma postura de vitimismo histórico; essa gente acredita piamente na ideia de que não existem agentes históricos externos desta perspectiva na qual quatro instituições sociais são “entidades seculares” pelas quais todo motor da história passa; acreditam na impossibilidade de que sequer exista história fora do determinismo, eventos que possam ser encaminhados ao longo de uma geração ou por um personagem influente. De Alexandre VI, o Papa Corrupto, a Napoleão, todos são sabotados e perdem seu papel de protagonismo diante daqueles que dominam os laços que amarram o ocidente.

Nesses moldes, a guerra cultural é um diálogo vazio, consigo mesmo ou com um grupo isolado, afeito a conspiração; a produção “literária” sobre o assunto reforça o título, as não arranha os problemas. Serve, outrossim, para alimentar a teoria da conspiração, “dialogar” com os seus, afeitos a explicação facilitada e reducionista. O papel de “antiacadêmico” não é adotado por esses "combatentes" da guerra cultural propositalmente. Eles gostariam de ocupar espaços dentro da engrenagem acadêmica. Se pudessem, o fariam, tal qual o fazem e redes sociais e espaços marginalizados de comunicação. O que sobraria do espaço de vítima da destruição dos valores ocidentais se assim o fizessem? Se fossem, por competência, acolhidos nas universidades? Deixar de ser antiacadêmico é o mesmo que perder a parcela no quinhão da vítima ou se aproveitar do espaço ocupado para se apresentar como perseguido. Essa gente é fundamentalmente mimizenta, vitimista e canalha. Aplicam para si a metodologia de escrita de "seja aquilo que critica nos outros". 

O conservadorismo brasileiro, tardio no interior, precisou disputar espaço no turbilhão de lutas sociais, busca de emancipação de direitos dos grandes centros urbanos. A qualidade baixa dessa disputa também pode ter tido alguma influência, mas o problema deles ainda é religioso (como eles insistem em resaltar) e geográfico (como eu estou apontando). O local é perfeito para perder uma batalha. Pela dificuldade de acesso a bens culturais que antagonizaram com a tensão da guerra cultural, a disputa aqui é mais recente, interiorizada apenas muito mais tarde que na América. Mais recente e menos emblemática, aliás. Racismo, antissemitismo ou machismo foram naturalizados no campo da tolerância que temos com os conspiracionistas nacionais. E isso é muito diferente de um conservadorismo que opera de dentro para fora, pelo campo dos costumes conservadores. A “discussão”, aqui, é feita para dissimular os próprios fracassos. Tocar abertamente nos problemas que originam a expressão é o mesmo que mostrar as feridas da própria derrota. Existe uma permanente necessidade de deixar de lado os problemas reais de conflitos religiosos, étnicos ou sexuais. O tema da religião, por outro lado, é permanente e flerta com todos esses tópicos, desproblematiza-os. A religião flerta com todas as esferas do histórico e do político e, eventualmente, com a guerra real, seja a revolução bolchevique ou a contrarreforma jesuíta. Mais do que ser a base para a teoria da conspiração, a guerra cultural é o método pelo qual o conservadorismo sobrevive na marginalidade. 

O conservador brasileiro é basicamente um derrotista, vítima da história, seus valores foram martirizados no sangue da guerra da qual nenhum ancestral seu participou e ele sonha em ser convidado para participar. O atestado do suburbano global
, europeu por "herança" e americano por "cultura", precisa ser carimbado com a desculpa dos motivos pelos quais não fazemos parte do ocidente. É impossível para o conservador urbano nacionalista contar com algum incidente histórico real que tenha maximizado o ocidente, a religião cristã e os valores estéticos presentes em sua memória cinematográfica. Sem ter diante de si sequer a estética rural de um oeste, é preciso que ele recorra a imagens ainda mais abstratas e estranhas. Com a derrota em todas as guerras religiosas reais desde o século XVI, a vítima precisa recorrer a imagem das Cruzadas. O conservador brasileiro basicamente é um cosplay de cavaleiro templário na praça de alimentação de um shopping. 

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Orçamento secreto, ilimitado, on line e custo/benefício

Eu estava revendo coisas que escrevi quando estive em Londres e relendo minhas próprias ideias, como é natural aos não-completamente idiotas. Tentei explicar naquela oportunidade que comparar valores de artefatos de luxo com produtos populares é uma intransigência de pessoas com alguma preguiça moral, sedentos por cortar cabeças, impiedosos com o dinheiro alheio. Tornei a me lembrar disso porque o comércio eletrônico entrou na minha vida de forma irreversível. Claro, que não tenho comprado nada de luxo nas últimas vidas que tive nesta Terra, mesmo assim, a internet nos deu poder de comparação para pesar o custo/benefício das coisas de compramos, não tínhamos antes, sabemos bem. E isso é tão democrático que vale para praticamente tudo, de relógios populares a carros de luxo, passando por toalhas de mesa. 

Alguns artigos despertam mais o interesse dos consumidores e das empresas de comunicação que se especializaram em release, review, unboxing e outros meios de narrar a experiência com um produto. Equipamentos eletrônicos ligados à tecnologia têm mais chance de despertarem o interesse do consumidor que procura por isso on line, porque - ao natural - é um consumidor que compra on line com mais facilidade, compara preços e se importa com o que tem para gastar. A relação entre custo e benefício foi alterada para tudo nas relações humanas. Namoros e paternidades têm sido pesados de maneira desumana e isso tumultuado as relações interpessoais, mas vou respeitar a minha regra de nunca falar sobre assuntos de psicologia comportamental, pelo profundo desgosto que tenho pelas pessoas que tratam disso como uma profissão da área da saúde. Gentalha, claro. 

O que quero dizer é que as relações de custo/benefício, afastadas do varejo, são outras no consumo, hoje em dia. A compra por impulso, na vitrine da loja, se limitou a quem não tem acesso à crédito ou mesmo à internet; também para produtos difíceis de serem transportados ou que preferencialmente são "provados", como vestimentas. No geral, o varejo vai desaparecer. 

Agora, você tem a oportunidade virtual de comparar aquilo que você está comprando com o pináculo da tecnologia em torno de um determinado produto: materiais mais duráveis, sistemas mais rápidos, desempenho e eficiência melhores. E pode fazer isso com absolutamente tudo o que deseja consumir. Isso desafia todos aqueles que - sem uma concorrência desse tipo, no passado - eram reconhecidamente os melhores nas suas áreas.  Principalmente, produtos de luxo. Custos precisam ser cortados, mas a pesquisa continua sendo a chave do problema para eles. 

Isso existe nos sistemas econômicos abertos no mundo todo, mas você precisará de uma caricatura econômica para entender o problema. E essa caricatura é o Brasil, um país onde as viúvas de um passado ruim e tacanha são saudosistas de Gol 1000, Corcel, Opala e Fusca. Carros ruins? Não. Horríveis! Apenas a única coisa que se tinha a disposição por burrice política e protecionismo. Até nosso nacionalismo é um projeto importado e mal executado. 

Vivemos tempos economicamente bizarros em muitos setores. As montadoras de automóveis de luxo, por exemplo, produzem com menos qualidade do que antes e cobram mais caro por isso. Aqueles que podem pagar querem, de fato, ostentar sem comparar, a marca faz diferença pra eles. Outros, na outra ponta da corda cada vez mais tensionada, trocam a carne vermelha pelo frango, o frango pelo ovo e o ovo é substituído - tenham piedade! - pelo que quer que seja. 

Concluo dizendo que recomendar a morte de Paulo Jegues é um imperativo moral e econômico inevitável. 

Cito Eduardo Cunha: Deus tenha misericórdia dessa nação!

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Até quando cala, Lula está te roubando

 A segunda metade dos anos 90, não produziu muitos políticos habilidosos. Brizola, talvez, com um pé na primeira metade. O resto da nossa inteligência política foi convertida em safadeza. Lula, hoje, é o principal responsável pelo não-impeachment do presidente da república. A manchete não é "Lira não vota pedidos de impeachment" é "Lula não quer a frágil oposição o impeachment". Faz isso, ao mesmo tempo que evita acenar para as elites e deixa a imprensa criar o mantra de que seu melhor jogo é "calado", esperando o antagonismo da campanha eleitoral. Vivemos, hoje, o PT de 2015: melhor prever como é mais fácil ganhar amanhã e dobrar a aposta. Vencer com Temer no governo era mais viável em 2016. Hoje, só com Bolsonaro elegível, Lula vence. Chegamos no estágio no qual a política brasileira é dependente da destruição do Brasil e da sua ingovernabilidade. Somos reféns de canalhas. Fomos sequestrados por canalhas. 

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Lata de Lixo da História Política


Nunca foi sobre voto impresso, muito menos sobre auditoria nas eleições. A demanda homérica criada pelo mandatário do poder Executivo é um plano novo, desesperado, de alguém que perde apoio político e vê as chances de reeleição diminuírem, dia após dia. Bolsonaro ficou com medo das urnas, porque - pela primeira vez - tem algo a perder. Acuado, encampou sozinho, sem apoio sequer na explanada dos ministérios, a ideia de um "voto impresso e auditável".

Nunca foi voto impresso. 

A lata de lixo da história acolhe pessoas vivas. Olavo de Carvalho é um excelente exemplo. Mas não da lata de lixo da história política! Trata-se, outrossim, de outra figura pública, articulista de jornais brasileiros importantes até 2005; uma outra figura, quando era astrólogo, bem antes disso, quando tentou a vida acadêmica. A lata de lixo da história de Olavo de Carvalho é acadêmica. Acuado, ignorado e desmentido pelo sistema organizado de produção intelectual, ele entendeu perfeitamente quando estaria sendo jogado na lata de lixo da história. Trocou a mendicância nas ruas de São Paulo pelo autoexílio, no momento mais oportuno de todos: o primeiro governo Lula, um governo "comunista". Mendigar nos USA, além de aparentemente mais coerente, é mais fácil. Ele não precisa assumir a responsabilidade jurídica e intelectual dos absurdos que passou a dizer. Basta que consiga criar uma vaquinha na internet para conseguir voltar ao Brasil, em seus tratamentos de saúde. Afinal, a vida de um idoso mendicante nos Estados Unidos também não é nada fácil. 

Qual o momento certo para Bolsonaro assumir o papel que lhe cabe na lata de lixo da história política? A pergunta não é se, mas quando. Ele é a pessoa mais vulnerável a perda do apoio que o elegeu. Diferente dos seus defensores oportunistas, como Onyx Lorenzoni ou Osmar Terra, com oportunidade de se refugiarem em cargos no Congresso, Estados e Prefeituras, Bolsonaro está sozinho. Personagens que o orbitam, sempre tiveram algo a perder. O momento mais oportuno para ele assumir o seu lugar na lata de lixo da história é mais parecido com o de Jânio Quadros do que com o de Fernando Collor. O ataque a urna eletrônica dá Bolsonaro a tese da inexigibilidade. Atacar a urna eletrônica reiteradas vezes é atacar o Supremo Tribunal Eleitoral e, na cola, todos os ministros do Supremo. É implorar para ser investigado, condenado e se tornar inelegível. A lata de lixo perfeita, no momento perfeito. É muito difícil ficar por cima do chorume, mas não custa tentar. Olavo conseguiu; Jânio conseguiu. 

Sem apoio para criar um partido político e com as chances de um segundo turno ameaçado, o papel de perseguido político de Bolsonaro é a única coisa que poderia lhe unir a Lula. É sua única chance a longo prazo. A inexigibilidade de Bolsonaro não é a única carta a disposição do presidente mais inepto, desde Jânio Quadros. É a alternativa do momento. Todas as outras ele não consegue reconhecer por burrice mesmo. Com a inexigibilidade, ele pode ter a chance de ser para a política aquilo que Olavo de Carvalho é para a universidade, um pária, ignorado, sustentado por vaquinhas on line

O papel de Bolsonaro será para sempre uma mistura de Jânio com Olavo: denunciado por algum filho, dependente dos votos de São Paulo para ser prefeito e sustentado pela mirrada militância que aceita orbitá-lo.