sábado, 2 de setembro de 2023

Carta ao Reinalo Azevedo, sobre o assunto mais chato da filosofia política: devemos silenciar um silenciador?

Seu trabalho hoje é o mais apodítico do jornalismo opinativo nacional. De fato, são poucos em condição de fazer mea-culpa para uma categoria como as dos jornalistas e levo em conta que aqueles que vem desempenham essa função estão beirando as raias da indigência. Mesmo que o papel de ombudsman da imprensa toda seja um papel deveras abstrato, reconheço-o quase que exclusivamente no senhor. Dito isso, notei, com várias audiências de seu programa, um profundo apreço pelo, assim chamado, “paradoxo da tolerância” do Karl Popper. De fato, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos é uma das grandes obras primas do pós-guerra. Apenas, a li com muito cuidado pelo seguinte: Popper é um epistemólogo e, na Filosofia, a genialidade do problema da Liberdade é tão amplo que pode ser adotado por quase todos os ramos dos conhecimentos filosóficos. O que me parece acontecer é que eu, e acredito inclusive o senhor, coincidimos na análise da questão da Liberdade pela filosofia política, com seus vieses sociais e, inclusive, bem delimitados por Rawls, Arendt e o velho I. Berlin. Daí decorre que temos vantagens que o pessoal da epistemologia não tem. E Poppper não pareceu ter. Não precisamos, diferente deles, nos preocupar com a liberdade da necessidade, ou da vontade, somos herdeiros de uma liberdade utilitária tal qual Mill, sem arrastar asas para a liberdade positiva de Kant a todo momento. Podemos, com naturalidade insistir com nosso interlocutor que estamos falando de liberdade no sentido de ausência de impedimentos e mantemos o assunto sobre controle.

Mas não lhe escrevo para falar das coisas com as quais concordamos. O caso é que, como homem da epistemologia, Popper fez um livro de epistemologia para filósofos políticos. Sua grande crítica, me parece, é identificar os inimigos da sociedade aberta como aqueles atrelados a um tipo tacanha de neo-platonismo, uma filosofia política que pudesse ser realista “como se” se relacionasse diretamente com o Mundo das Ideias, o fim da história, uma utopia realista (com o perdão da necessidade do termo absurdo). Creio que essa seara só pode ser entendida com mais vagar e calma em um texto do Habermas, sobre a “Modernidade como projeto inacabado” (também famosinho no problema da exigência que apenas a chamada pós-modernidade trouxe: consertar a sociedade, sem poder pará-la, como se conserta um barco que não pode nunca ser levado para o porto ou ancorado).

Pois bem, Popper não acreditava, creio eu, no paradoxo da tolerância da forma como ele ficou famoso e distribuído na internet através de meme. Não acredito que ele tenha se preocupado com o tema como um politólogo o faz. Logo, a resposta ao problema não é “a tolerância irrestrita leva a sociedade à movimentos totalitários, intolerantes por sua natureza política. Evitemos isso a todo custo”. Essa me parece ser uma resposta objetiva e realista do ponto de vista da relação entre Política e Mundo das Ideias. Platão a deu para criticar a democracia, reconhecendo que um dos problemas da massa poderia ser a agressão de indivíduos que dela discordassem. As variantes do problema são reapresentadas por Tocqueville e até por Mill e se estabelece assim a recomendação indelével da preservação da consciência individual, diante da multidão de autocratas.

Em Popper, outrossim, o paradoxo está em uma nota de rodapé do livro e lá, pasmem, Popper é muito mais utilitarista do que Mill jamais foi! A alegoria que Popper repete, na minha opinião, é muito parecida com aquela do autor londrino na obra Sobre a Liberdade. Só para contexto: lá, Mill vai nos limites das vias de fato quando resolve “limitar” a opinião de um grupo de disruptivos, traduzo:

 

Não se pretende que as ações devam ser livres como as opiniões. Ao contrário, as opiniões sempre perdem sua imunidade quando as circunstâncias nas quais elas são expressas são tais como as que constituem sua expressão uma instigação positiva a algum ato permissivo. Uma opinião de que negociantes de milho são inimigos dos pobres, ou de que a propriedade privada é pilhagem, deve ser imperturbável quando apenas circula entre a imprensa, mas pode justificar incorrer em punição quando oralmente proferida para excitar uma insurgência montada diante da casa de um negociante de milho, ou quando dirigida em meio à mesma insurgência no formato de um cartaz (CW XVIII:260).

 

Peço desculpas pela tradução. “Mob” não é uma mera “insurgência”, está mais para um grupo de bandidos, mafiosos, mas vendo e revendo, não encontrei outra forma de traduzir.

Observado isso, mais uma fez, tento fazer o que também o vejo fazer no seu programa de rádio: distingo a razão da Modernidade da balbúrdia dos pós-modernos. Entendo que opiniões radicais, controladas dentro da minha sala de aula na universidade ou em debates controlados pelo senhor na emissora de rádio ou jornais, não se equivalem a grupos de mafiosos plantados propositalmente na frente de quarteis. Noto que uma opinião organizada sobre desobediência civil, tiranicídio ou defendendo pena de morte expressa em um evento civilizado é algo muito diferente de um (deus nos perdoe!) podcast do Monark!

Escrevo-lhe sobre isso porque gostaria de lembrar que não me parece que Popper saiu criticando o mero movimento dos intolerantes que, sim, deve ser combatido pela sociedade civil. Popper, de fato, parece ter sido deveras tolerante com os intolerantes, quando escreveu o seguinte sobre a República:


 

Diante do chamado paradoxo da tolerância, o rancor de Platão à democracia talvez nunca tenha sido mais bem exemplificado: é o reconhecimento da contradição interna de que a democracia nos leva com mais facilidade à tirania do que qualquer outra forma de governo conhecida pelos gregos. Não faz parte do projeto platônico a liberdade como sendo o reino da eterna vigilância. Não cabe ao grande filósofo do Mundo das Ideias fazer compreender que o processo paradoxal da democracia é de fato só paradoxal mesmo; e daí? Ele excluiu o caminho sem o cogitá-lo, fiel a República como o espaço do perfeitamente justo. Seriamos nós capazes de não reconhecer que as pistas já estavam lá, justamente quando Platão, na República, fala de Justiça. Popper não é anti-platônico num sentido tão simples que pode ser reduzido ao paradoxo da democracia. Justiça nas sociedades modernas é algo mais amplo do que “dar a cada um o que lhe compete”, estar de acordo com o melhor para o Estado, ou como prefere Popper (deste vez, não em nota de rodapé, mas no corpo do texto, pág. 103): “igual distribuição do ônus da cidadania, isto é, das limitações de liberdade que são necessárias na vida social”. Popper, moderno tal qual Kant, é o primeiro a reconhecer que a liberdade, assim como o voo da pomba depende justamente daquilo que o limita: o ar sem o qual o voo não seria apenas dificultado, mas impossível. Nem pombas voam no vácuo; nem democracia funciona sem tolerar intolerantes em um grau que torna nossas vidas insuportáveis.

“Não quero implicar que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia”. Popper reclama o direito de não tolerar os intolerantes muito antes do patrimônio público ser atingido pelo terrorismo, mas – para criticar Platão! – foi deveras tolerante com os intolerantes, pois foi um moderno em meio a uma pós-modernidade já instalada. Tal qual teus antecessores e sucessores, liberais como gostamos de ser, Popper apostou num iluminismo que chamava a razão aqueles apegados à deia de liberdade abstrata anterior à modernidade, ou como lembrou Habermas: não basta o ódio de Platão a democracia, o projeto de burguês pós-moderno nega a modernidade, sugere uma volta “conservadora” a um mundo que não existe mais, onde ele não era apenas burguês como projeto. Popper foi antes de tudo uma pedra angular protegendo a democracia em uma arquitetura completamente platônica, idealizada, perfeccionista no narcisismo tanto dos intolerantes quanto daqueles dispostos a sair por aí consertando o mundo.

Desejo saúde eterna e sobriedade perene.

Obrigado pelo seu trabalho.

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