Seu trabalho hoje é o mais
apodítico do jornalismo opinativo nacional. De fato, são poucos em condição de
fazer mea-culpa para uma categoria como as dos jornalistas e levo em conta que
aqueles que vem desempenham essa função estão beirando as raias da indigência.
Mesmo que o papel de ombudsman da imprensa toda seja um papel deveras abstrato,
reconheço-o quase que exclusivamente no senhor. Dito isso, notei, com várias
audiências de seu programa, um profundo apreço pelo, assim chamado, “paradoxo
da tolerância” do Karl Popper. De fato, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos é
uma das grandes obras primas do pós-guerra. Apenas, a li com muito cuidado pelo
seguinte: Popper é um epistemólogo e, na Filosofia, a genialidade do problema
da Liberdade é tão amplo que pode ser adotado por quase todos os ramos dos
conhecimentos filosóficos. O que me parece acontecer é que eu, e acredito
inclusive o senhor, coincidimos na análise da questão da Liberdade pela
filosofia política, com seus vieses sociais e, inclusive, bem delimitados por
Rawls, Arendt e o velho I. Berlin. Daí decorre que temos vantagens que o
pessoal da epistemologia não tem. E Poppper não pareceu ter. Não precisamos,
diferente deles, nos preocupar com a liberdade da necessidade, ou da vontade,
somos herdeiros de uma liberdade utilitária tal qual Mill, sem arrastar asas
para a liberdade positiva de Kant a todo momento. Podemos, com naturalidade
insistir com nosso interlocutor que estamos falando de liberdade no sentido de
ausência de impedimentos e mantemos o assunto sobre controle.
Mas não lhe escrevo para falar
das coisas com as quais concordamos. O caso é que, como homem da epistemologia,
Popper fez um livro de epistemologia para filósofos políticos. Sua grande
crítica, me parece, é identificar os inimigos da sociedade aberta como aqueles
atrelados a um tipo tacanha de neo-platonismo, uma filosofia política que
pudesse ser realista “como se” se relacionasse diretamente com o Mundo das
Ideias, o fim da história, uma utopia realista (com o perdão da necessidade do
termo absurdo). Creio que essa seara só pode ser entendida com mais vagar e
calma em um texto do Habermas, sobre a “Modernidade como projeto inacabado”
(também famosinho no problema da exigência que apenas a chamada pós-modernidade
trouxe: consertar a sociedade, sem poder pará-la, como se conserta um barco que
não pode nunca ser levado para o porto ou ancorado).
Pois bem, Popper não acreditava,
creio eu, no paradoxo da tolerância da forma como ele ficou famoso e
distribuído na internet através de meme. Não acredito que ele tenha se
preocupado com o tema como um politólogo o faz. Logo, a resposta ao problema
não é “a tolerância irrestrita leva a sociedade à movimentos totalitários,
intolerantes por sua natureza política. Evitemos isso a todo custo”. Essa me
parece ser uma resposta objetiva e realista do ponto de vista da relação entre Política
e Mundo das Ideias. Platão a deu para criticar a democracia, reconhecendo que
um dos problemas da massa poderia ser a agressão de indivíduos que dela
discordassem. As variantes do problema são reapresentadas por Tocqueville e até
por Mill e se estabelece assim a recomendação indelével da preservação da
consciência individual, diante da multidão de autocratas.
Em Popper, outrossim, o paradoxo
está em uma nota de rodapé do livro e lá, pasmem, Popper é muito mais
utilitarista do que Mill jamais foi! A alegoria que Popper repete, na minha
opinião, é muito parecida com aquela do autor londrino na obra Sobre a
Liberdade. Só para contexto: lá, Mill vai nos limites das vias de fato quando
resolve “limitar” a opinião de um grupo de disruptivos, traduzo:
Não se
pretende que as ações devam ser livres como as opiniões. Ao contrário, as
opiniões sempre perdem sua imunidade quando as circunstâncias nas quais elas
são expressas são tais como as que constituem sua expressão uma instigação
positiva a algum ato permissivo. Uma opinião de que negociantes de milho são
inimigos dos pobres, ou de que a propriedade privada é pilhagem, deve ser
imperturbável quando apenas circula entre a imprensa, mas pode justificar
incorrer em punição quando oralmente proferida para excitar uma insurgência
montada diante da casa de um negociante de milho, ou quando dirigida em meio à
mesma insurgência no formato de um cartaz (CW XVIII:260).
Peço desculpas pela tradução.
“Mob” não é uma mera “insurgência”, está mais para um grupo de bandidos,
mafiosos, mas vendo e revendo, não encontrei outra forma de traduzir.
Observado isso, mais uma fez, tento
fazer o que também o vejo fazer no seu programa de rádio: distingo a razão da
Modernidade da balbúrdia dos pós-modernos. Entendo que opiniões radicais,
controladas dentro da minha sala de aula na universidade ou em debates controlados
pelo senhor na emissora de rádio ou jornais, não se equivalem a grupos de
mafiosos plantados propositalmente na frente de quarteis. Noto que uma opinião
organizada sobre desobediência civil, tiranicídio ou defendendo pena de morte
expressa em um evento civilizado é algo muito diferente de um (deus nos
perdoe!) podcast do Monark!
Escrevo-lhe sobre isso porque
gostaria de lembrar que não me parece que Popper saiu criticando o mero
movimento dos intolerantes que, sim, deve ser combatido pela sociedade civil.
Popper, de fato, parece ter sido deveras tolerante com os intolerantes, quando
escreveu o seguinte sobre a República:
Diante do chamado paradoxo da
tolerância, o rancor de Platão à democracia talvez nunca tenha sido mais bem exemplificado:
é o reconhecimento da contradição interna de que a democracia nos leva com mais
facilidade à tirania do que qualquer outra forma de governo conhecida pelos
gregos. Não faz parte do projeto platônico a liberdade como sendo o reino da
eterna vigilância. Não cabe ao grande filósofo do Mundo das Ideias fazer
compreender que o processo paradoxal da democracia é de fato só paradoxal mesmo;
e daí? Ele excluiu o caminho sem o cogitá-lo, fiel a República como o espaço do
perfeitamente justo. Seriamos nós capazes de não reconhecer que as pistas já
estavam lá, justamente quando Platão, na República, fala de Justiça. Popper não
é anti-platônico num sentido tão simples que pode ser reduzido ao paradoxo da
democracia. Justiça nas sociedades modernas é algo mais amplo do que “dar a
cada um o que lhe compete”, estar de acordo com o melhor para o Estado, ou como
prefere Popper (deste vez, não em nota de rodapé, mas no corpo do texto, pág.
103): “igual distribuição do ônus da cidadania, isto é, das limitações de
liberdade que são necessárias na vida social”. Popper, moderno tal qual Kant, é
o primeiro a reconhecer que a liberdade, assim como o voo da pomba depende
justamente daquilo que o limita: o ar sem o qual o voo não seria apenas
dificultado, mas impossível. Nem pombas voam no vácuo; nem democracia funciona
sem tolerar intolerantes em um grau que torna nossas vidas insuportáveis.
“Não quero implicar que devamos
sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos
contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião
pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia”. Popper reclama o
direito de não tolerar os intolerantes muito antes do patrimônio público ser
atingido pelo terrorismo, mas – para criticar Platão! – foi deveras tolerante
com os intolerantes, pois foi um moderno em meio a uma pós-modernidade já
instalada. Tal qual teus antecessores e sucessores, liberais como gostamos de
ser, Popper apostou num iluminismo que chamava a razão aqueles apegados à deia
de liberdade abstrata anterior à modernidade, ou como lembrou Habermas: não
basta o ódio de Platão a democracia, o projeto de burguês pós-moderno nega a
modernidade, sugere uma volta “conservadora” a um mundo que não existe mais,
onde ele não era apenas burguês como projeto. Popper foi antes de tudo uma
pedra angular protegendo a democracia em uma arquitetura completamente platônica,
idealizada, perfeccionista no narcisismo tanto dos intolerantes quanto daqueles
dispostos a sair por aí consertando o mundo.
Desejo saúde eterna e sobriedade
perene.
Obrigado pelo seu trabalho.
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