sábado, 4 de junho de 2022

Guerra cultura: Brasil, uma batalha esquisita

Passei 25 dias lendo fanfic da extrema-direita, meu cérebro não derreteu, mas... 

O problema em termo da guerra cultural nasce de tensões estéticas e urbanas, estabelecidas especialmente a partir da pluralidade de recursos culturais. Nos Estados Unidos, o termo foi empregado por Robert Mapplethorpe (1946-1989), fotógrafo nova-iorquino que utilizou o termo para se auto-identificar em meio a tensão de críticas a sua própria produção com fotografias potencialmente eróticas. São três os campos de batalha da Guerra Cultural, desde então: religião, sexualidade e etnia. No Brasil, a própria perspectiva de tensão é frustrada. E eu vou tentar explicar porquê.


Por conta de inabilidade no trato dos problemas centrais, falta de comprometimento epistêmico com aquilo que de fato se defende, a guerra cultural no Brasil não foi ruralizada, como nos Estados Unidos, mas pouco se toca nos problemas que concernem a sexualidade e etnia diretamente. Os conservadores brasileiros preferem uma abordagem voltada para o conspiracionismo. As teorias da conspiração utilizadas por aqui não são divergentes daquelas das quais se aproveitam os escritores dedicados ao tema “Guerra Cultural” na América, mas possuem características especiais. Em primeiro lugar, a estética que é sugerida se transforma em algo não-rural ou de “desenvolvimento” urbano do interior. Em segundo lugar, por falta de uma estética conservadora no estilo “texas ranger cowboy”, as noções de família, raça ou mesmo o antissemitismo, marcas latentes destes escritores nacionais é fundamentalmente levada para uma religiosidade católica-conservadora, paralela ao neopentecostalismo latente da sociedade brasileira.

A expressão “guerra cultural” é utilizada para identificar o “debate público” sobre os três temas centrais sem se voltar diretamente para eles; sempre tratando indivíduos ou grupos no campo político “comunista” ou “anticominista”, tentando reduzir a isso a própria História, dentro da tensão política-cultural.

Os escritores que tentam se identificar com esse fator no Brasil possuem duas características em comum: Olavo de Carvalho como fonte primária de seus escritos; e pouco ajuste em referenciais diretos com as teorias da conspiração coirmãs norte-americanas. Essa observação não decorre apenas do fato natural da dificuldade que tais indivíduos têm com a língua estrangeira. Mais do que isso: Olavo serve como uma barreira estabelecida entre a estética rural-pentecostal americana e a defesa da tese geral de desmonte do ocidente pelo declínio do catolicismo. Este filtro evita que nossos “escritores conservadores” precisem aderir ao pentecostalismo em si, e permite que seu conspiracionismo caminhe em paralelo com os colegas brasileiros, movimentados por pastores.

É um atraso do conservadorismo brasileiro nos campos de batalha. Os americanos conseguem ser muito mais abertamente antissemitas, racistas, xenófobos e sexistas, pelo fato de suas teses da conspiração possuírem um pano-de-fundo descolado da tradição do catolicismo, no entanto, também há outros atrasos aqui:

i) a abertura política tardia (tal qual os totalitarismos europeus) manteve os problemas centrais da guerra cultural represados por mais tempo;

ii) lutamos uma “guerra contra o comunismo” por procuração, sem convite direto para a Guerra Fria, uma disputa sem custos militares e sociais diretos para o país; o conservador brasileiro é viúvo de uma guerra que não lutou ou sequer foi convidado para lugar;

iii) ausência de reconhecimento nacional, um país continental que não se reconhece como nação, abre espaço para patriotismo de coalisão, descompromissado com a identidade nacional, especialmente aquela do interior de sua própria terra; a preferência aqui é pela estética do agroboy americano.


A cultura artística e seus fenômenos na música e artes visuais, contraponto natural ao conservadorismo, nos termos da Guerra Cultural, teve pouca influência no interior do Brasil, quando comparado a mesma difusão, correlacionada a cultura nos Estados Unidos. Aqui, a ideia propagada de “marxismo cultural” é um fenômeno urbano, para esses “pensadores” do conservadorismo, nunca explicado de um Brasil interiorano ou contemplativo. A influência da repressão no interior do Brasil não se deu pela cultura que precisava ser administrada no eixo de produção relevante, Rio-São Paulo, mas chegou ao interior pela economia, pelo êxodo, pela fome, não pela cultura. No interior do Brasil as ideias nacionalistas coexistem com mais naturalidade com o racismo estrutural, com a mestiçagem étnica e sincretismo religioso; nas capitais com menos naturalidade e com mais truculência a cultura precisou ser preocupação do estado censor.
 A linguagem global de comunicação, de fora para dentro, do litoral para o interior, chegou muito mais tardiamente no Brasil que importava para a Guerra Cultural nos Estados Unidos, a estética contemplativa do agrário, da família nuclear, o campo onde o branco governa e o negro trabalha. Aqui não houve esse espaço de adesão.

Toda teoria da conspiração que é naturalizada no interior americano, precisa chegar ao Brasil pela esfera da religião; ali está, para nossos conspiracionistas, a destruição dos valores ocidentais e a religião resume aqui o problema da guerra cultural. Não em virtude disso, mas como consequência deste fator, o produto da produção das teorias conspiratórias aqui é pulverizado sobre uma gama de fatores geopolíticos internacionais, complicados de serem analisados por um personagem histórico que não enfrentou a guerra, mas se julga derrotado.

“As grandes religiões (catolicismo e islã), as famílias dinásticas (Rothschild, Rockfeller), as sociedades iniciáticas (monarquia e rosa cruz) e o partido revolucionário (o partido comunista)” são elementos históricos que para os conspiracionistas brasileiros resumem toda a história, os “atores-motores” responsáveis integralmente pelos caminhos comunistas traçados pela humanidade. Vale notar que todos eles são elementos de ordem religiosa, seja pela presença do judaísmo na citação direta a famílias tradicionais judias americanas ou pela presença do partido comunista, representando o ateísmo na política. O antissemitismo, quando utilizado em terras tupiniquins, por exemplo, é diferente daquele antissemitismo contemplativo americano, fundamentalmente anti-industrial ou como pedra de toque da comunicação distribuída massivamente ao interior. É um antissemitismo direto, apresentado apenas por meio da guerra cultural, na qual o ocidente é o derrotado.

Toda teoria da conspiração é apresentada para se adotar uma postura de vitimismo histórico; essa gente acredita piamente na ideia de que não existem agentes históricos externos desta perspectiva na qual quatro instituições sociais são “entidades seculares” pelas quais todo motor da história passa; acreditam na impossibilidade de que sequer exista história fora do determinismo, eventos que possam ser encaminhados ao longo de uma geração ou por um personagem influente. De Alexandre VI, o Papa Corrupto, a Napoleão, todos são sabotados e perdem seu papel de protagonismo diante daqueles que dominam os laços que amarram o ocidente.

Nesses moldes, a guerra cultural é um diálogo vazio, consigo mesmo ou com um grupo isolado, afeito a conspiração; a produção “literária” sobre o assunto reforça o título, as não arranha os problemas. Serve, outrossim, para alimentar a teoria da conspiração, “dialogar” com os seus, afeitos a explicação facilitada e reducionista. O papel de “antiacadêmico” não é adotado por esses "combatentes" da guerra cultural propositalmente. Eles gostariam de ocupar espaços dentro da engrenagem acadêmica. Se pudessem, o fariam, tal qual o fazem e redes sociais e espaços marginalizados de comunicação. O que sobraria do espaço de vítima da destruição dos valores ocidentais se assim o fizessem? Se fossem, por competência, acolhidos nas universidades? Deixar de ser antiacadêmico é o mesmo que perder a parcela no quinhão da vítima ou se aproveitar do espaço ocupado para se apresentar como perseguido. Essa gente é fundamentalmente mimizenta, vitimista e canalha. Aplicam para si a metodologia de escrita de "seja aquilo que critica nos outros". 

O conservadorismo brasileiro, tardio no interior, precisou disputar espaço no turbilhão de lutas sociais, busca de emancipação de direitos dos grandes centros urbanos. A qualidade baixa dessa disputa também pode ter tido alguma influência, mas o problema deles ainda é religioso (como eles insistem em resaltar) e geográfico (como eu estou apontando). O local é perfeito para perder uma batalha. Pela dificuldade de acesso a bens culturais que antagonizaram com a tensão da guerra cultural, a disputa aqui é mais recente, interiorizada apenas muito mais tarde que na América. Mais recente e menos emblemática, aliás. Racismo, antissemitismo ou machismo foram naturalizados no campo da tolerância que temos com os conspiracionistas nacionais. E isso é muito diferente de um conservadorismo que opera de dentro para fora, pelo campo dos costumes conservadores. A “discussão”, aqui, é feita para dissimular os próprios fracassos. Tocar abertamente nos problemas que originam a expressão é o mesmo que mostrar as feridas da própria derrota. Existe uma permanente necessidade de deixar de lado os problemas reais de conflitos religiosos, étnicos ou sexuais. O tema da religião, por outro lado, é permanente e flerta com todos esses tópicos, desproblematiza-os. A religião flerta com todas as esferas do histórico e do político e, eventualmente, com a guerra real, seja a revolução bolchevique ou a contrarreforma jesuíta. Mais do que ser a base para a teoria da conspiração, a guerra cultural é o método pelo qual o conservadorismo sobrevive na marginalidade. 

O conservador brasileiro é basicamente um derrotista, vítima da história, seus valores foram martirizados no sangue da guerra da qual nenhum ancestral seu participou e ele sonha em ser convidado para participar. O atestado do suburbano global
, europeu por "herança" e americano por "cultura", precisa ser carimbado com a desculpa dos motivos pelos quais não fazemos parte do ocidente. É impossível para o conservador urbano nacionalista contar com algum incidente histórico real que tenha maximizado o ocidente, a religião cristã e os valores estéticos presentes em sua memória cinematográfica. Sem ter diante de si sequer a estética rural de um oeste, é preciso que ele recorra a imagens ainda mais abstratas e estranhas. Com a derrota em todas as guerras religiosas reais desde o século XVI, a vítima precisa recorrer a imagem das Cruzadas. O conservador brasileiro basicamente é um cosplay de cavaleiro templário na praça de alimentação de um shopping. 

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