sábado, 11 de maio de 2024

A primeira coisa a se reconstruir é a História

O ditado popular que sugere a ideia de que a "primeira vítima da guerra é a verdade" tem um fundamento deveras incompleto. Explico. É preciso compreender que a primeira coisa a se reconstruir, após a destruição absoluta da geografia é a própria História. Foi assim quando a Alemanha, primeiro destruída, depois dividida, precisou convencer o mundo sobre a necessidade de se reconstruir. Os alemães que sobraram convenceram americanos e franceses que não restaria alternativa diante do estabelecimento de outra potência, a soviética. A História da Alemanha precisaria ser repetidamente contada, inclusive, pelo futuro da Europa, e criou-se um estado tampão, refreando os bolcheviques. 

Sepultou-se o ego alemão, já devastado pela guerra, mas inflado desde muito antes de Weimer, portanto, resistente ao cal jogado na cova. Toda História do idealismo alemão, agora um conjunto de anacronismos, foi colocada de lado. Fichte, Schelling, Goethe e Nietzsche foram solenemente abandonados e, até hoje, são eternos impraticáveis do romantismo, vistos mais como anti-iluministas do que como filósofos e literatos. Lixou-se a História da unificação da Alemanha, obrigou-se cada alemão nascido a partir 1945 a pedir desculpas, na certidão de nascimento. E ainda bem!

A mesma coisa vai acontecer com o Rio Grande do Sul, se quiser continuar existindo. 

Aqui, como na República de Weimer, a verdade já deixou de existir, alvejada. Convenceu-se o gaúcho de que o commodity agrícola faz mais parte da História do que índio, o negro e a pecuária. Fantasiou-se que o colono, retirante europeu, é antagônico ao sem-terra açoriano que fundou Porto Alegre no séc. XVIII, ambos impedidos de ocupar seus lugares no mundo, por conta de alguma guerra. Mentiu-se vergonhosamente e se criou um romance de cavalaria como se a única maneira de tocar o Rio Grande fosse sobre quatro patas. Hoje, pela piedade de historiadores como Tau Golim, se sabe que a existência do povo gaúcho dependeu mais da água, rainha absoluta do devir!, do que de carroças, cavalos e caminhonetes de péssimo gosto e nenhum desempenho. 

A bacia do Guaíba, talvez destruída para sempre, foi historicamente mais importante para as vitórias do nosso povo do que qualquer mentira resistente do positivismo, vivíssima dentro nos enfadonhos CTGs. Jacuí, Sinos, Caí e Gravataí foram os primeiros lugares onde se instalaram os sonhos do Rio Grande interiorano, urbano, industrial, colono e desenvolvimentista. Aqueles que hoje choram suas perdas não têm culpa sistêmica: vítima é vítima. Como na alegoria de Weimer, o crime é montado para que a culpa seja pulverizada. Encontrar os culpados não é uma tarefa simples, mas necessária na reconstrução da História.

Para encontrar aqueles que devem ser julgados e condenados será necessário reescrever a História e, com a reescrita, se observará a coincidência de que aqueles que reclamam "não é o momento de encontrar culpados" são os culpados. Com a História recontada, se descobrirá que o elogio comprado pelo jabá do sertanejo universitário nas rádios nunca foi voltado para a pequena-propriedade; e que há mais chances de encontrar terra debaixo das unhas do povo gaúcho do que debaixo dos pés. Se descobrirá, ainda, que soterrar o pantanal e derrubar a amazônia pode fazer o agro pop, mas é o agro dos outros, e para o pampa pobre restará lama e entulho, quando - e se - a água baixar. 

É preciso recontar a História do Rio Grande do Sul, perseguir todo rescaldo de positivismo e resistência ao iluminismo, decidir se nossa bússola é a razão, a ciência e a indústria ou o opúsculo da nossa própria história. Quando transformamos cidades inteiras em reservas de resistência e homenagem aos mortos, incorporarmos os cavalos sobreviventes ao quadro da Brigada Militar e trocarmos a imagem mítica e importada do gaúcho como um centauro por um índio em um barco, finalmente teremos alguma chance. 

Assim como o idealismo alemão foi eficiente em formar sua legião de anti-iluministas pela violência e pela força, dispensando a liberdade da razão, talvez não tenha nos restado alternativa que a imitação dos nossos antepassados colonos, negros e índios. 

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