1.              
Considerações
iniciais
A
possibilidade de uma democracia alternativa, em consonância com o modelo republicano
e liberal foi ventilada pela primeira vez por Habermas em um texto que se
tornou clássico como crítica ao liberalismo contemporâneo e o surgimento da
comunicação de massa, aleatória, mas aliada do apetite de funcionamento da
produtividade. Se por um lado, temos o modelo do republicanismo se encarregando
de mediar processos democráticos, mais do que a função da mera mediação, vemos a
consolidação do constitucionalismo na formação da sociedade; por outro, temos o
liberalismo, com o Estado programado para servir de laboratório dos interesses
da sociedade; impondo os interesses da sociedade civil, inclusive. Este ensaio,
primeiramente, resenha a ideia central do modelo de democracia deliberativa de
Habermas e, depois, insere seus três principais conceitos em um contexto
colonizado.  Cidadão, direito e processo
político são vistos exemplificados no Amapá, onde o simulacro do modelo liberal
e republicano de democracia se confunde com as diversas camadas de colonização
empregadas sobre o mundo da vida.
Mesmo
tendo comparado ambos os modelos de democracia contemporâneos, liberal e
republicano, Habermas não os contrapõe de maneira invariável, admitindo a
inclusão concomitante de ambos dentro do cenário das democracias modernas. Pelo
contrário, é pela convivência permanente dos modelos republicano e liberal que o
autor sugere um modelo alternativo, interno a sua teoria do discurso, ou
democracia deliberativa. Com a representação dos modelos anteriores, busca-se fortalecer
o modelo liberal e enfraquecer o republicano, até um ponto de encontro.
Enquanto a tensão entre os dois modelos permanece, com o desacoplamento entre
política e sociedade, as soluções parciais também vão surgindo, como a tentativa
de reacoplamento feita pela administração pública com a comunicação de massa, o
jornalismo se transforma em oficialato, enquanto o entretenimento se
marginaliza ou ocupa uma posição passiva; na gíria brasileira: “pão e circo”. A
formação da sociedade republicana, munida desta complexificação da ética,
promove noções importantes para o funcionamento dos modelos de democracia vigentes.
Solidariedade, por exemplo, torna-se uma parte fundamental dessa nova ordem.
Uma vez que estejam mantidas as noções de desacoplamento e reacoplamento, advindas
dos pressupostos liberais, o republicanismo se encarrega da mediação constitucional,
de onde o estado e a sociedade de mercado se encarregam da formação de uma
burocracia sobre o bem-estar social. Institucionaliza-se, em definitivo, a
solidariedade – antes, uma mera ideia entre outras virtudes mais rígidas do cristianismo
– como padrão de reconhecimento e legitimação social.
O
mesmo acontece com outros conceitos decompostos ou criados em meio a democracia:
sobrevivem em zona cinzenta, sem objetividade, mas como válvulas de escape das
tensões sociais do novo estágio alcançado. O “cidadão” passa a ser o indivíduo que
delibera politicamente sem coações externas, em substituição ao súdito, de quem
herda as liberdades pré-políticas. O direito, na mesma esteira, passa a ser o
direito à personalidade jurídica, não só como direitos subjetivos (liberalismo),
mas especialmente no sentido republicano com a personificação do cidadão,
instituições, empresas, e direitos propositalmente objetivados. A lei que está
legitimada pelos dois modelos de democracia altera o processo político em uma
zona de intersubjetividade.
O
próprio Habermas admite certos limites para este processo de assentimento do
cidadão por meio das pessoas e dos programas agendados em meio a liberdade de
associação entre liberais e republicanos. O ponto de convergência, antes discutidos
no âmbito do mercado, passa para o diálogo, mas sem grandes alterações no modus
operandi da democracia. O foco do republicanismo e dos conflitos privados
passam a ser mediados pela publicidade dada ao embate dos assuntos público,
submersa a um pretenso argumento racional. Já na década de 90, na comparação
entre os modelos liberais e republicano, com seus eixos no mercado e nos
projetos, o autor compreende que o grande modelo se resume a tensão entre
comunitaristas e liberais com o estreitamento ético dos discursos em um palco
bastante específico: Estados Unidos da América. Já a teoria do discurso nasce
no vácuo cultural da capacidade de sociedades serem mais ou menos recolonizadas
por comunitaristas e liberais, nas diferentes formas que essas noções chegam em
ambientes periféricos. A pretensão da democracia deliberativa de Habermas,
neste aspecto, parece respeitar um certo gradualismo na diferença encontrada em
meio a outras tensões políticas. Mais adiante, veremos se essa concepção se
mantém.
A
Teoria da Ação Comunicativa (1981), obra seminal da teoria do discurso, já
articulava, 10 anos antes da crítica aos modelos de democracia, os limites dos
direitos fundamentais impostos pela defesa contemporânea do Estado de Direito.
Agora, o autor tem a oportunidade de expor outra parte da sua crítica: a
articulação emergente da vontade comum, por meio das agendas do liberalismo
contrastadas pelo republicanismo. A opinião da sociedade passa a importar nas
demandas com uma intersubjetividade de ordem superior. O uso da comunicação
para fomentar decisões eleitorais e legislativas é parte importante desse novo
uso no qual lobby e ativismo se confundem na comunicação de massa; e a
diversidade de espaços públicos considerados “autônomos” para a interação é altamente
demandado pela diversidade interna das sociedades, antes isoladas da influência
das novas propostas e agendas liberais.
Habermas
nos demonstra com o amadurecimento de sua obra que a colonização, muitas vezes,
é apresentada em “camadas”, não só no espaço e tempo, mas na maneira como as
diferentes zonas de domínio chegam aos lugares marginalizados e historicamente
ignorados do Globo. Quando a teoria comunicativa exige a participação do
cidadão na esfera pública “descobre-se” uma maneira de institucionalizar a
liberdade civil do sujeito, reclama-se um modelo de institucionalização em meio
ao republicanismo. Essas demandas normalmente são atendidas, mas não
necessariamente da mesma maneira que se institucionalizam atores políticos em repúblicas
como os Estados Unidos da América. O mesmo acontece quando a esfera do direito
precisa de uma concepção liberal para orientar a ordem jurídica, seja pela
burocracia ou pelo novo grupo de agentes, outrora impedidos de acessar livremente
a ordem jurídica. Resta ao processo político fazer uso da esfera pública com
uma comunicação orientada pelo entendimento; neste novo espaço de deliberação se
encontrará o processo de formação do cidadão e de exteriorização da vontade
política, por meio dos projetos.
Habermas
nos mostrou uma nova exigência da filosofia política contemporânea, tal qual apresentada
nas democracias liberais, com a necessidade de superarmos o discurso ético, com
outras concepções valorativas; passamos a buscar direito positivados para
“guardar” conformidade com princípios morais, sem usá-los necessariamente na
esfera pública. Dessa nova atitude dependem os direitos do homem e a eticidade
nas comunidades liberais.
A
teoria do discurso com a democracia deliberativa busca fortalecer o modelo
liberal e enfraquecer o modelo republicano até um ponto de convergência, a
cidadania. Um novo ator coletivo junta-se aos conceitos de cidadão, direito e
processo político para incorporar a solidariedade como força de interação
social, sem a necessidade de tornar patrimonialista os espaços públicos ou
terceirizar os procedimentos de formação democrática, solidificando-os. O poder
administrativo assim superaria as forças políticas no controle dos recursos da
comunidade para incorporação da solidariedade, mas não é assim que acontece na
prática de comunidades pretensamente liberais, colonizadas e recolonizadas como
aquela que passamos a descrever agora em três contraexemplos, o ex-território do
estado do Pará, atual estado brasileiro do Amapá.
 
2.              
Processo
político: a esfera pública da democracia na colonização cebola
O
modelo de democracia deliberativa de Habermas é condicionado pelas resistentes
atividades políticas e públicas nas comunidades onde o liberalismo não é uma
realidade materializada e as concepções de moralidade não se alteram, mas se
adaptam ao discurso da eticidade vigente. O processo político obliterado pelo
simulacro de democracia, no estado brasileiro do Amapá, tem contornos que alteram
a vontade política da maioria, não restando espaço para qualquer elemento
deliberativo.
O
Amapá é um estado-ilha do Brasil, não literalmente uma ilha, como veremos. A
história do ex-território o faz ser pensado como algo que ele não é: isolado
por terra do restante do Brasil no platô das guianas, sem fronteiras por terra
ou pontes com o Brasil, mas com fronteira por terra em local ermo e sem acesso
ao Suriname e com fronteira por ponte sobre o rio Oiapoque. Paradoxalmente, o
lugar com mais fácil acesso terrestre é o mais distante no imaginário do
amapaense médio: a Guiana Francesa, zona do euro e formalmente território colonizado
até os dias de hoje. Os acordos de acesso entre Brasil e França não são
propriamente bilaterais. A ponte que liga os países existe por interesse e
recursos brasileiros, mas é usada quase que exclusivamente pelos chamados “franceses”,
em direção ao território brasileiro, sem a cobrança de taxas para veículos ou
exigência de vistos, exatamente as demandas jamais flexibilizadas para
brasileiros em território ultramarino da França. No município brasileiro de
Oiapoque, é consenso que o melhor jeito de acessar o território francês são as
chamadas “voadeiras”, pequenas embarcações que fazem o trajeto pela água com facilidade
e contando com uma fiscalização conivente e propositalmente fragilizada da
França. O interesse do Brasileiro por uma moeda economicamente mais
fortalecida, não se contenta em margear o município francês de
Saint-Georges-de-l'Oyapock, mas invade o território por diversos meios e por
diversos motivos. Não é incomum a repercussão de casos trágicos envolvendo
acidentes de trabalho em regiões de garimpos ou acidentes náuticos com
brasileiros. Em agosto de 2021, 19 compatriotas morreram na costa do oceano Atlântico,
em uma canoa que provavelmente tentava circundar a costa guianense do rio
Oiapoque até o rio Aproak. Especula-se que todos trabalhariam ou prestariam
serviços em área de garimpo.
A
miséria brasileira com relação ao respingo de euros na região contrasta com a
visibilidade que o território francês tem no imaginário local: passa a
impressão de que a Guiana Francesa é um lugar mais rico, mais influente;
contudo não se trata de uma porta de entrada de brasileiros na Europa, mas de
um local diretamente submergido em sua própria colonização, prova indelével que
vem quando os discursos ambientais válidos no terreno do colonizador não se
reproduzem como ações nos territórios colonizados. A balança comercial da
Guiana Francesa não é divulgada com exatidão - separada da movimentação
comercial francesa, mas se estima que 30% do PIB seja representado pelas mineradoras
de ouro (dados de 2012). Os valores contrastam com a necessidade de subsídios e
benefícios para a população local, dependente da França metropolitana.
Com
isso, mostramos que a colonização brasileira se dá em camadas, como uma cebola,
no mundo da vida dos habitantes locais. Uma colonização cultural, econômica e ainda
política, relacionada a outro local colonizado, igualmente de costas para o
poder político central. O sonho pela melhoria na qualidade de vida de muitos amapaense
depende de uma colônia estrangeira e os vistos são emitidos exclusivamente da
embaixada francesa mais próxima, em Brasília. O Brasileiro amapaense não vive
apenas ilhado, mas seus interesses públicos na democracia nacional são como exclaves
da geopolítica brasileira, separados da pátria mãe, não como um território
ultramarino, a exemplo da Guiana Francesa, mas isolados e dependente de outras
articulações para acessar a democratização de bens e serviços.
Outra
marca indelével da colonização em camadas, também pode ser observada na comunicação
da política amapaense. Diante de nomes locais com alguma expressão
intermediária ou em ascensão, José Sarney foi e segue sendo o maior nome da história
na política local. Em meio a outros atores políticos importados no passado,
como o paraense Coaracy Nunes, o ex-presidente da república escolheu o Amapá
para fincar suas estacas políticas. Foi presidente do Senado da República pelo Estado,
formou lideranças locais, mas jamais morou aqui. Mantém jornalistas locais como
seus assessores de imprensa e, finalmente aposentado da vida política, sustenta
uma vida pública tímida no Amapá, com reproduções de algumas colunas republicadas
em um jornal local, chamado Diário Popular.  A fonte original dos textos publicados por
Sarney segue sendo o jornalismo maranhense.
A
colonização cultural não vem sem a colonização política e econômica. O
principal apadrinhado político de Sarney é Davi Alcolumbre (União). Também
ex-presidente do Senado, ele é atualmente o político local de maior influência
nacional. Destinador de emendas e verbas para manter seu apoio político,
Alcolumbre segue o caminho do tutor e reconhece a importância da colonização
pela cultura e pelo imaginário. Os recursos do seu gabinete sustentam, no Amapá,
a Nagib Comunicação e Marketing LTDA (10.278.118/0001-30), propriedade de Naiara
Patrícia Barbosa Richene e Francisco Nagib Amin Richene Junior. No ano de 2023,
a empresa empenhou 12 notas fiscais totalizando R$ 310 mil para sustentar a
família Nagib, uma das responsáveis pela campanha de Alcolumbre no Amapá. Os
valores públicos são empenhados como “divulgação de atividade parlamentar”,
fora do período de campanha, diretamente ligados ao gabinete do senador.
O
mesmo método é utilizado pelo senador Lucas Barreto (PSD). Junto com Alcolumbre,
Barreto compra apoio local, ou pelo menos o silêncio conivente, de Sales Nafes que
se apresenta como jornalista. O blogueiro é conhecido nas redes sociais pelas
notícias policiescas e populares, mistura textos escritos por pastores
neopentecostais e entrevistas feitas com delegados. No seu site, chamado de
“portal”, há publicidades diversificadas, mas sempre ligadas às instituições
públicas (prioritariamente: governos, ensino e companhias públicas). Em 2023, S
Nafes M Da Silva Junior (18.827.227/0001-70) empenhou 23 vezes em nome de dois
senadores. Cobrados, os amapaenses dispenderam R$90 mil em recursos públicos
para sustentar o site; Barreto com 12 empenhos e Alcolumbre com 11; a emissão
de notas variou entre R$ 2mil e R$8mil. O jornalismo local inexiste com a
prática. Nas concessões públicas de rádio e TV, os políticos e os governos são
os principais protagonistas, divulgando políticas públicas, obras e,
especialmente, eventos.
 
3.              
A
concepção da ordem jurídica na colonização cebola
A
maior empresa que já existiu no Amapá chamou-se Icomi, a Sociedade Brasileira
de Indústria e Comércio de Minérios de Ferro e Manganês. Diante das multinacionais
estrangeiras vencedoras da licitação (Hanna Coal and Ore Corporation),
prevaleceu o lobby do mineiro Augusto Antunes em 1947. Ele recorreu ao
próprio presidente Dutra com um discurso nacionalista e liberal e iniciou a prospecção
do minério de manganês na localidade de Serra do Navio no ano seguinte. A Icomi
tinha também a preferência de Janary Nunes (primeiro governador do território e
irmão do já citado Coaracy). Apesar da aproximação dos políticos locais com o trust
estrangeiro, prevaleceu o patrimonialismo da família Nunes com a
industrialização nacionalista, com aspectos pouco liberais e, como veremos, nada
republicanos.
Mesmo
com o fim do Estado Novo, Janary havia visitado, anos antes, a sede da Icomi em
Belo Horizonte. O discurso desenvolvimentista nacional durou pouco tempo: em
1949, a empresa uniu-se a estadunidense Bethlehem Steel Company. Em meio
a incerteza do governo Dutra sobre a participação estrangeira nos recursos
naturais do Brasil, a disputa entre liberalismo e republicanismo ficou latente;
a natureza jurídica da empresa, nesse cenário, operou na incerteza jurídica do
primeiro ao último dia.
A
rota mais movimentada da Amapá na segunda metade do século passado foi a
estrada de ferro entre Serra do Navio e o porto de Santana. Hoje abandonada, a ferrovia
serviu para a Icomi transformar Serra do Navio em uma cidade fantasma. A vila
operária do município é hoje a segunda estrutura arquitetônica tombada como
patrimônio material pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) no Estado. Em abril de 2010 o tombamento foi oficializado, mas Serra do
Navio não compete em atenção turística ou imponência com a Fortaleza de São José
de Macapá, na orla do Rio Amazonas, em Macapá. Mesmo assim, Serra do Navio
existe sem acesso asfáltico, e praticamente todos os prédios construídos pela
mineradora nas décadas de 50 e 60 na Vila de Serra do Navio foram tombados; as
edificações estão hoje abandonadas ou servem de moradia aos “filhos e netos” da
Icomi.
A
contaminação do lençol freático, igarapés e rios com ferro, arsênio e manganês veio
acompanhada pela principal “atração turística” do interior do Amapá: as
chamadas lagoas azuis. Atualmente, parte da população local sobrevive de
pousadas, restaurantes e excursões em um “turismo de selfie”. A quantidade de
minérios na formação das lagoas que ascendem das antigas escavações traz imagens
de águas translúcidas, foco das lentes dos visitantes. Os turistas eventuais
adoram. Carreatas de amapaenses e turistas de outros lugares (incluindo
guianeses e franceses) se dirigem ao hoje município de Serra do Navio por
estradas esburacadas. Alguns fazem tracking pelas matas e passam pelas
ruinas das plantas industriais da Icomi, acampando no alto da montanha do que
foi a mina do quadrante F12. Diante de uma lagoa azul e com temperaturas mais
amenas, os turistas acompanham o nascer do sol, em meio a neblina, inexistente
nas regiões de planalto, distantes da serra.
Mesmo
com o trabalho hercúleo do Iphan, inúmeras intervenções inadequadas foram feitas
em prédios tombados, especialmente nas residências utilizadas por moradores. Restaurantes
improvisados e pousadas surgiram para atender a nova demanda. Os restos de
Serra do Navio que não foram levados do Amapá subsistem em montanhas de minério
de ferro, tanto lá quanto nas margens do porto de Santana. Vinte anos depois do
fim da extração, em 2017, a Justiça Federal autorizou a empresa a redestinar o
estoque; 5% do valor arrecadado com as vendas devem ser colocados em um fundo da
Câmara de Conciliação que adjudica o prejuízo em benefício do município de
Serra do Navio.
A
concepção liberal como orientação da ordem jurídica fracassou duas vezes: quando
a Icomi passou na frente das multinacionais e depois filiou-se a uma delas, e
quando ignorou o passivo ambiental abandonado no interior do Amapá. No final
dos anos 50, os trabalhadores terceirizados, especialmente para instalação da
planta industrial comprada com os americanos, se reduziu a pouco mais de 200. A
empresa que teve um auge de 1200 funcionários contratados, foi perdendo a
receita das commodities o início dos anos 80, quando africanos e
asiáticos despejaram manganês no mercado internacional; o produto se
desvalorizou. A bancarrota total veio em 1998 quando o último contrato de
trabalho direto com Icomi foi rescindido. A estrutura de terceirizados subsiste
especialmente com serviços de zeladoria e vigilância.
A
colonização do território pelas vidas do direito não parece ter garantido uma
concepção liberal suficientemente sólida para orientar a ordem jurídica no caso
do Amapá.
 
4.              
O
cidadão paraense, primeira camada da cebola, colonizador e colonizado
Ao
falar dos primeiros políticos amapaense, passa-se a impressão de que a
colonização vinda do estado do Pará é tão unilateral quanto a fronteira com a
Guiana Francesa, para proveito só de um. No entanto, o Amapá possui um elemento
constrangedor e inflacionado desde a institucionalização do território em 1943,
a forte dependência do poder público como empregador ou gerador de força e
renda. Com o fim do território e o surgimento do Estado, enquanto Unidade da
Federação, manteve-se o relacionamento do Amapá, especialmente da região
metropolitana de Macapá e Santana, com a maior divisa natural de dois
territórios brasileiros: a foz do Rio Amazonas. No outro lado do rio, o chamado
ABC do Marajó (Afuá, Breves e Chaves) é uma complexa teia de corredores
marítimos em meio às ilhas do maior arquipélago fluvial do mundo, o Marajó.
A
maioria dos cidadãos brasileiros habitantes das ilhas também estão de costas
para o poder político do Estado do Pará. Com o fim do território, o Amapá se
tornou o centro comercial e de assistência dessas pessoas. O maior consumidor
de farinha, açaí e consequentemente fornecedor de serviços públicos para as
ilhas do Pará é o Amapá. Muitas comunidades afastadas da sede de seus
municípios não possuem escolas públicas de Ensino Médio. As turmas aglutinam
alunos por idade; e enviar um filho para estudar em Macapá ou Santana é
economicamente mais racional do que o enviar para a sede do município.
A
cidadania marajoara é compartilhada com o Amapá no sentido cultural e comercial.
Hoje a rota mais movimentada do Amapá é pelas águas: na circulação de barcos,
navios e embarcações menores em direção às ilhas do Pará, especialmente Afuá, e
vice-versa. A massiva injeção de dinheiro público em shows e eventos nacionais,
especialmente, pelas prefeituras em anos eleitorais, traz visitantes que muitas
vezes passam apenas uma noite em Macapá e retornam em viagem de duas horas para
a “Veneza Marajoara”.  A movimentação
contrária também é latente. Sem estrutura turística, com poucas pousadas e
apenas um hotel com 15 quartos, o Afuá vê sua população de 37 mil habitantes triplicar
no Festival do Camarão. As pessoas acampam em redes, nos pátios e praças e
especialmente dentro das embarcações, com o mesmo objetivo: acompanhar shows e circular
pelo evento.
A
cultura musical mais difundida na região é o tecno-brega. Versões
abrasileiradas de músicas internacionais de sucesso, distorção na voz dos
cantores (e especialmente cantoras) são as únicas regras sem variação: tanto no
Amapá quanto no Afuá, existe uma ojeriza pelo silêncio. O sucesso artístico na
maioria das vezes depende mais da cor e do tamanho do equipamento que da
popularidade da música que toca. A aparelhagem se sobressai em tamanho e ornamentação,
com luzes de led e pinturas vibrantes contrastando com a calma na qual a maré
de altera. No Afuá, as caixas de som que são carregadas pelas bicicletas muitas
vezes têm um valor comercial maior que o próprio meio de transporte. Trata-se
do único município do Brasil onde carros e motocicletas são proibidos por lei
municipal, pois a cidade inteira existe em área de pontes, dando exclusividade
de transporte por tração humana.
As
noções gerais de cidadania funcionam sem a institucionalização da liberdade
pública da maneira mais literal possível, a informalidade. Inexiste perturbação
do sossego quando portas não precisam ser trancadas ou o são como simulacro da burocracia.
A responsabilidade civil toca apenas o limite do dano. Casamentos, relações de
trabalho e responsabilidades familiares são menos institucionalizadas que qualquer
evento de tecno-brega ou o horário de baixar o volume para permitir que idosos
e crianças durmam.  
 
5.              
Considerações
finais
Percorremos
assim três exemplos que tratam do problema do liberalismo e da tensão acumulada
com o republicanismo. Nesse sentido, cidadão, direito e processos políticos funcionam
em meio a uma colonização bastante peculiar, com aspectos que coincidem com o
de países que passaram por revoluções liberais, mas esbarra em um cenário de
contradições internas muito particulares. Vemos assim que a cidadania não é
necessariamente, como apregoava Habermas, um novo ator coletivo, apenas
incorporando noções de solidariedade – forçosamente – diante da interação
social acumulada, como maneira de controle social pelo poder administrativo. A
institucionalização da cidadania, neste aspecto, não toca necessariamente a teoria
liberal exigida no ambiente público, pelas regras advindas de uma concepção republicana
de sociedade. O poder público serve apenas como assistencial, podendo se dar ao
luxo de ignorar a sociedade em absoluto quando o assunto for a tentativa de
mediação.
De
maneira nada liberal, também se observa que a esfera dos direitos fundamentais
e do estado de direito não interagem com a articulação da opinião em vontade
comum (republicana). Da mesma maneira que o modo de viver da economia insustentável
preconizado no passado, o Amapá volta a agenda nacional do direito apenas
quando fracassarem as condições de conciliação. Discute-se, assim, apenas a
tensão entre capital desenvolvimentista e “benefícios” sociais que nunca chegaram
ou chegarão, como no caso das especulações em torno da extração de petróleo na
foz do Rio Amazonas, pauta nacionalizada que vem importada pelos políticos
locais instalados em Brasília. Trata-se da questão no Amapá como “último
recurso” para desenvolvimento do Estado; mente-se deliberadamente sobre os
benefícios para a população local; e a solidariedade transforma-se em uma
agenda dependente da administração pública e não da sociedade civil organizada.
A concepção liberal pode, mais uma vez, orientar parte da ordem jurídica, mas
não se sustenta em meio as práticas não-republicanas.
Da
mesmíssima forma o processo político não terá condições de consolidar a esfera
pública aprimorando o mecanismo da democracia deliberativa sem algum grau de
independência da informação. A comunicação pública não tem uma sustentação orientada
para o entendimento, quando comprada pela massa de políticos e especuladores.  
Em
resumo, não parece haver nenhuma condição material para ultrapassar o discurso
ético através de concepções políticas valorativas como as estudas. Cidadão, direito
e processo político servem muito para aqueles interessados em respostas fácies
para questões difíceis, mas a eticidade da comunidade e os direitos dos homens
seguem vulneráveis a ataques. Contamos assim, apenas, com as alternativas
marginalizadas, seja pela falsa promessa desenvolvimentista, seja pelo projeto
permanente de gradualismo nas alterações de base econômica. O modelo de
democracia deliberativa, como vimos, não pode ser usado como alternativa às
alterações graduais que o Brasil tem de modelo desde sua colonização, pelo
contrário, podem ser reinterpretados como traumaticamente gradualistas.
 
6.              
Referências
HABERMAS,
Jürgen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do
Legislativo, Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do Estado de Minas
Gerais, v. 2, n. 3, p. 105-121, jan./jun. 1995.
HABERMAS,
Jürgen. Modernidade: um projeto inacabado. In: ARANTES, Otília B. Fiori;
ARANTES, Paulo E. Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas.
Editora Brasiliense: Brasília, 1995.  
HABERMAS,
Jürgen. “Notas sobre o conceito de ação comunicativa”. Trad: Mauro Guilherme
Pinheiro Koury. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.
14, n. 40, pp. 1-25, abril de 2015.
G1,
AMAPÁ, Amazônia. Canoa com mais de 20 pessoas naufraga na costa da Guiana
Francesa < https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2021/09/03/canoa-com-mais-de-20-pessoas-naufraga-na-costa-da-guiana-francesa-um-corpo-foi-resgatado.ghtml
>, 3 de set. 2021, acessado em: 25 de jun. de 2024.
PASSOS,
Delaíde Silva. A Icomi e a exploração mineral no Território Federal do Amapá. Anais:
XII Congresso Brasileiro de História Econômica & 13ª Conferência
Internacional de História de Empresas. Assoc. Brasileira de Pesquisadores
em História Econômica: Niterói, 2017.