segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Síndrome da Autoafirmação

Esse final de semana, eu fui cortar o cabelo ali no Sílvio. O Sílvio é um barbeiro meio rabugento meio gente boa que trabalha aqui perto de casa, sei lá, há uns 30 anos. Existem dois assuntos em barbearias: futebol e todos os outros. Como não entendo nada de futebol, sempre preciso ter um assunto na manga para disfarçar meus defeitos. Então, sugeri para o Sílvio um assunto envolvendo seus negócios: a ampliação substancial de concorrência na volta. Barbearias se proliferaram na Cidade Baixa, no mesmo ritmo que o crack. Primeira observação do Sílvio: "não é concorrência, porque ninguém volta nas outras barbearias". Fiquei sem entender o motivo e passou.

Lá pelas tantas, entrou outro cliente, se serviu de um copo d'água do bebedor, enquanto aguardava e sugeriu para o Sílvio: "verão chegando... com esse calor, podia botar uma água e vender aí, Silvio". Ele não deixou passar: "Não dá, chefe. O povo pensa que é brinde. Tem coisas que não dá pra misturar. Eu recém falei para o colega aqui (se referindo a mim). O pessoal fica abrindo essas barbearias, servindo cerveja e tal... meu cliente vai lá, para fazer uma foto e pôr no feicibuqui, mas depois volta".

Só fui entender o Sílvio, depois de passar na frente dos concorrentes dele e prestar mais atenção. Realmente, começou a surgir um mercado de "barbearias gurmetizadas". Funciona assim: você vai num lugar para cortar o cabelo, toma uma cerveja, olha uma revista com um artigo estranho sobre a diferença entre smoking e fraque, e tira uma foto para postar na rede social. A tal foto rende muitos joinhas, mas só funciona uma vez. Daí a tese do Sílvio: "não é concorrência, quando ninguém volta lá". A pessoa só vai voltar num lugar bizarro desses se chegar no nível de passar glitter na própria barba.

As pessoas estão proibidas de querer tomar uma cerveja artesanal puro malte plantado por monges da serra gaúcha? Não. As pessoas estão proibidas de querer pagar 50 reais por um corte de cabelo balaqueiro, quando poderia pagar 20 por um "normal"? Também não. Estão proibidas de pagar mais caro, para não esperar na fila, com mais três caras aguardando para cortar o cabelo? Nem pensar. O problema central desse fracasso é a tentativa de se autoafirmar, buscando um espaço com características "super-masculinas"; afinal, como eu vou passar pela vida sem deixar muito claro que sou homem, né?

É assim em vários níveis e em várias situações do nosso cotidiano mais ordinário. Todo mundo anda querendo fazer da vida uma frase feita, dessas para se compartilhar em rede social.

Vou citar um exemplo óbvio. "Não sou obrigada" é um slogan de efeito, repetido pelo movimento feminista, em ritmo de mantra. Quem se filia a uma obviedade dessas jamais vai admitir que, sim, você é obrigada a repetir isso centenas de vezes e, de preferência, fazer uma hashtag para deixar muito claro que não é obrigada a fazer nada. "Não se deixe levar por modinhas" é a modinha da vez. A autoafirmação de muita gente depende dessas coisas.

Fazemos isso com uma frequência surpreendente, porque buscamos nos esquivar da mais irrefutável das verdades: nós aprendemos do mundo as regras e não as exceções. E, precisamente por causa disso, a autoafirmação é um dos dramas mais contundentes dessa sociedade mimizenta. Nada mais normal do que ver alguém que faz parte da regra se julgando a mais nobre das exceções.

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