Meu chefe me incumbiu de entrevistar um velho de esquerda. Fui informado de que o velho só daria a entrevista por meio de um interprete de tupi-guarani. Outra exigência seria não usar o telefone: "marca registrada do imperialismo que afasta as pessoas das relações mais próximas e diminui o poder coletivo", segundo ele. Eu deveria ir pessoalmente encontrar o velho. Ele morava numa casa de capim-barreado, mas fomos dar uma volta no seu Gurgel. Eu, o velho e o interprete. Os dois olhavam com desconfiança para o meu gravador da Sony e eu com curiosidade para o chapéu de palha dele (muito bonito, aliás).
Fiquei sabendo que o senhor participou da luta contra a ditadura?
Sim. Infelizmente, meu trabalho sempre foi pacífico. Nunca assaltei banco. Por isso, não fui torturado fisicamente. Pago meus pecados até hoje. Queria ter algo para honrar meus netos, sabe? Uma marca no corpo.
Tá, mas me disseram que o senhor foi torturado mesmo assim.
Fui, sim. Confiscaram minha coleção da Veja [naquela época, de esquerda] e me fizeram assistir os filmes do Jabor [naquela época, também, de esquerda]. Dava até vontade de virar reacionário. O objetivo dos miliquinhas era não deixar marcas. Só danos psicológicos.
Afinal, o que o senhor fazia contra a ditadura?
Eu era um espião infiltrado na classe média. Mantinha meus colegas informados sobre a movimentação da mídia golpista.
Quer dizer que o senhor era filhinho-de-papai?
(O interprete avisou que não havia um jeito de traduzir isso)
E esses danos psicológicos rendem hoje uma aposentadoria?
Não ganho aposentadoria. É uma ajuda de custo para pagar o psiquiatra.
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