segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Ele sequer foi obrigado a estar ali

Conviver com funcionários públicos é deprimente. Deprimente, no sentido mais profundo que qualquer coisa ligada a depressão pode adquirir. Eu estava esperando uma oportunidade para falar sobre isso. O assunto é surrado desde Max Weber. Apanhou mais que couro na curtição. Então, vou me ater a uma história pessoal.

Por motivos que não interessam aqui, precisei ir a uma delegacia da Polícia Federal em uma outra cidade para resolver algumas coisas puramente técnicas. Lá chegando, me deparei com um balconista. Ele estava atrás de um balcão gigantesco com um grande escudo da Polícia Federal estampado em relevo. Já de longe, o escudo me disse: "Aqui é um lugar de respeito. Não se meta a bobalhão". Pois bem, fechei meu sorriso e fiz cara de solerte. Entreguei a documentação para o balconista ao som de um lúcido "bom dia", da minha parte. Silêncio do outro lado do balcão.

O cara regulava comigo em idade. Não tão jovem para ser um perfeito idiota; nem suficientemente velho para saber alguma coisa relevante sobre a vida. O balconista estava uniformizado como se fosse para a guerra do Afeganistão. Era jovem. Usava uma jaqueta escrito Polícia Federal em letras garrafais. Se o objetivo era deixar o ar condicionado congelante e todos os frequentadores que vinham da rua sob uma temperatura de 40 graus passando frio, estava dando muito certo. Uma camiseta GAP, combinando com uma corrente ornada por um distintivo da Polícia Federal, mais ou menos do peso do meu notebook. Completando o modelito, como assessório básico, uma pistola .40 no coldre.

Como o balconista entendeu o que eu queria apenas olhando para os documentos que eu trouxe, ele disse que iria aguardar o delegado se liberar de um outro compromisso para assinar os documentos que eu precisava. Sem uma sala de espera ou algo parecido, fiquei por ali, na frente do balcão, conversando com um colega que me acompanhava. O balconista da Polícia Federal atendia o telefone e falava coisas do tipo: "Não existe passaporte emergencial, senhora. Vai precisar entrar no site, preencher os formulários e aguardar o agendamento. Demora uns dois meses. Dependendo do volume de pedidos... blá, blá. wiska sache".

Basicamente, o balconista da Polícia Federal era a pessoa mais triste que eu já vi na minha vida. O pobre carimbador maluco fazia dois ou três movimentos e suspirava. Mas suspirava, sabe? O esforço para desempenhar a função de balconista era muito impeditivo. Retrocedendo na vida daquele balconista vemos um aluno de direito dedicado que estudou para passar num dos mais concorridos concursos públicos do Brasil. Ao ser aprovado, pensou que ingressaria em uma instituição que combate o crime organizado, o tráfico internacional de drogas e armas. Durante os meses do curso de treinamento jamais pensou que seria balconista. Hoje é um balconista fantasiado e com salário de policial federal. Seu lugar de trabalho é uma repartição pública cheia de carimbos, papéis, formulários e computadores com softwares livres. Há também algumas impressoras matriciais barulhentas para imprimir em duas vias. Pior: existem outros funcionários públicos. A semelhança entre isso e um lugar onde se combate o crime é a mesma que existe entre a secretaria de uma escola e um estúdio da CSI.

O cara que estava atrás do balcão começou a atender outras pessoas que estavam chegando ali. Eu e meu amigo seguimos conversando e o balconista nos interrompeu. Sem nenhuma paciência, pediu que nos afastássemos do balcão. Aparentemente, nossa conversa estava atrapalhando o atendimento. Sem nenhum constrangimento, nos retiramos para o lado da porta. Meu colega seguiu falando, mas eu não dei muita bola. Não conseguia tirar os olhos daquele balconista da Polícia Federal. Eu conseguia ver um câncer crescendo dentro dele. A infelicidade e a frustração resultam em tumores gigantescos. Alguém me explica como alguém tão inteligente para passar em um concurso público tão concorrido como o da Polícia Federal pode se submeter a uma vida tão infeliz? Um sujeito jovem e cheio de capacidades pode realmente admitir a tese absurda que a estabilidade do seu contracheque pode lhe dar uma vida estável? Não existe vida estável. Não se confia em pessoas estáveis.

Se eu tivesse dois minutos do mal distribuído tempo daquele balconista da Polícia Federal, diria o seguinte para ele:
"Bicho, vaza daqui logo! Tens muita coisa pela frente. Ainda tem tempo para mudar o mundo. Não existe porque se limitar a um salário desses. Com tua inteligência e a capacidade que tens, poderias tranquilamente fazer o que quiseres para tornar tua vida uma coisa mais interessante que isso. Poderia inclusive, se assim achar que deve, ganhar mais dinheiro do que ganhas hoje! Te sugerir algo mais interessante do que isso que tu fazes é perda de tempo. Não vou te fazer perder esse tempo. Nem tenho esse tempo para perder. Mas, se estás insatisfeito com a vida de carimbador maluco, podes começar uma vida nova saindo por aquela porta, já! O bom da felicidade é que ela é o conceito vazio mais completo que existe. Podes rechear a tua felicidade com qualquer coisa e ser alguém completo. Podes fazer qualquer coisa que te faça feliz, sem interferir no direito dos outros de fazerem a mesma coisa. E isso é muita coisa. É muita alternativa para uma vida só. Boa sorte, velho".
Escrevi outra vezes sobre esse fascínio completamente sem sentido que as pessoas médias têm com os malditos concursos públicos e com a ideia de estabilidade. Brasileiro nasce, cresce, estuda para o concurso público e morre. É o nosso sonho de um lugar sem trabalho. Um lugar onde o estado está em todos os lugares. O estado cumpre todos os papéis. Não é preciso indústria, agricultura, comércio. Todos seremos funcionários da grande máquina estatal e o sistema nos trará iPhones 5 importados com preços maravilhosos.

Vergonha alheia tem limite. Se seu raciocínio também está errado, eu deixo que use o meu.

2 comentários:

Anônimo disse...

"carimbador maluco". Muito bom o texto, Everton. Você é bem bom.

Anônimo disse...

"carimbador maluco". Muito bom o texto, Everton.