sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Morte Súbita

Charles Kiefer

Pensei coisa ruim quando vi os carros, as bicicletas e as carroças no pátio da nossa casa. Eu tinha doze anos e voltava da escola, as aulas haviam sido suspensas por causa da copa do mundo. Lembrei da mãe, da doença lá dela, magra feita um caniço, os olhos fundos e arroxeados, a boca desdentada. Me deu um nó na garganta, uma vontade muito grande de chorar. Há um ano atrás, meu avô também falecera. Agora, eu ia sentir, de novo, o cheiro enjoativo das flores murchas e do sebo das velas. Não lembro se perguntei à mãe o significado do ritual fúnebre, mas ainda posso ouvi-la, com sua voz de passarinho molhado, a chama do círio significa a fragilidade da vida, qualquer ventinho pode apagá-la. Era professora primária, a minha mãe. E fazia questão de conjugar os verbos com precisão, para dar o exemplo. Nisso, nas tempestades da doença, ela também deu o exemplo. Resistiu, até a manhã daquele dia, quando me serviu o último café, sem uma reclamação, um gemido, um momento de desespero. Subi a escada da varanda, lento, zonzo, com dor no peito e nas pernas. Parei no topo, fiquei de costas para a porta. A estrada de chão batido deslizava até a vila, onde a mãe gostava de me levar para passear, tomar sorvete, espiar a vitrine das lojas, como ela dizia, que o dinheiro era contado, mal dava para as necessidades mais urgentes. Nunca mais, eu pensei, e aí sim, aí não consegui mais segurar, chorei como se vomitasse, como se expelisse de minhas entranhas todas as lembranças, todos os afagos, todas as ternuras. Era doce, a minha mãe. De uma doçura serena, como o arroz-de-leite que ela fazia aos domingos. Eu nunca me cansava de comer. E agora, morta. Nunca mais ela polvilharia pó de canela sobre o meu arroz de leite, nunca mais. Ouvi, à distância, meio abafado, meio brumoso, o hino nacional. Não sei se era uma patriota fanática, mas minha mãe gostava das coisas do Brasil. Nas paradas de 7 de setembro, lá estava ela na avenida, com a bandeirinha, me saudando. Eu marchava teso, engomado. Não sabia bem o que era aquilo, o diretor da escola exigia a participação no desfile cívico, todos obedeciam. Minha mãe me ajudava a decorar longos poemas, que eu declamava no dia da bandeira, no dia do índio, no dia do descobrimento. Na hora do grêmio literário, lá estava ela, na primeira fila do auditório, balbuciando versos mais difíceis, eu não me perdia nunca, a gente treinava leitura labial em casa, antes das apresentações. O hino cessou, abri a porta, atravessei a cozinha. A sala estava abarrotada, meus tios, meus primos, os parentes mais distantes, os vizinhos, todos em silêncio, todos com esse profundo silêncio dos vivos diante dos mortos. Não pedi licença, fui empurrando aqui e ali, pisando os pés de tias e primas, sem me desculpar, eu só queria vê-la, eu precisava vê-la. E, de repente, meu Deus, eu a vi. Linda, quieta, sentadinha, enroladinha num cobertor, a olhar fixamente para um ponto no canto da sala. Enfim, o pai comprara o televisor que ela tanto queria. Na tela, Rivelino, Pelé, Tostão, e aqueles outros craques que nunca mais esquecemos, iniciavam um caminho pontilhado de extraordinárias vitórias.

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