quinta-feira, 17 de julho de 2008

A arte é longa

Charles Kiefer

Tento dormir, mas a dor na cabeça, na garganta e nas articulações espantou o sono. Tenho febre e a horrível sensação que a acompanha, uma vontade de enroscar-me em mim mesmo, uma vontade de jogar-me no abismo subjetivo que deseja devorar-me.

Levanto, vou à sala e aproveito o tempo para refletir sobre minha tese a respeito do conto. Abandonei quase tudo, exceto minhas oficinas literárias, para dedicar-me a duas obras: Sofia, minha filha de grandes olhos azuis, e o doutorado abandonado há seis anos. Ambas crescem, em mim e fora de mim.

Constato, sem muita perplexidade, que os autores que estou analisando, Poe, Cortazar, Tchecov, Kafka e Borges, mais que a paixão comum pelo conto, compartilharam outra coisa: a doença. Edgar Allan Poe era dipsomaníaco e opiômano.

Julio Cortazar sofria de um mal estranho. Era, ele próprio, mais estranho que seus personagens. Um distúrbio genético impedia que parasse de crescer. Morreu com estatura de gigante, duplamente.

Anton Tchecov e Franz Kafka finaram-se sob a insídia da tuberculose, à meia-idade.E Jorge Luís Borges, talvez o maior contista de todos os tempos, além de suicida fracassado, era impotente e cego. Poe, delirante, escreveu contos oníricos.

Cortazar, com o corpo tomado, criou uma supra-realidade, povoada por Cronópios e Famas. Tchecov e Kafka, talvez por que lhes faltasse o ar, escreveram contos brevíssimos. Borges, saudoso de sua biblioteca, desenvolveu uma memória enciclopédica. Os seres saudáveis, dedicam-se aos esportes.

Aos doentios, sobra-lhes a arte, em suas múltiplas manifestações.

Recordo-me da infância - efeito secundário da febre -, quando tinha que ficar em casa, aprisionado, prisioneiro de minha própria asma. Talvez os livros em minha vida tenham sido consequência da falta de saúde. O assunto, de certa forma, já foi muito bem examinado por Teixeira Coelho, em As fúrias da mente. Ele rastreia, na cultura ocidental, a nefasta influência da melancolia e da depressão sobre a nossa produção artística.

O mapeamento do código genético e a eliminação sistemática das falhas geradoras das doenças podem levar-nos, num futuro não muito distante, ao fim da arte.

Deliro. É efeito da febre.

Como, nesse futuro, a saúde não será um patrimônio público, somente os ricos nascerão geneticamente saudáveis - enfim o Ubermensch nietzschiniano -, os pobres continuarão poetas, músicos, contistas.

A arte é longa.

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