No matrimônio moderno, a poestia tem força de lei
*João M. Salles
No dia 16 de janeiro, o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar recebeu um email. Não reconheceu o remetente. Olhou o campo do assunto e leu: “Convite poético”. Havia a dúvida: seria um convite em forma de poesia? Um convite para uma tertúlia poética? Nem uma coisa nem outra. “Oi, Fabrício, tudo bem?”, começava o texto. “Não nos conhecemos pessoalmente. Meu nome é Eliza, sou jornalista. Escrevo por um motivo especial. Pode parecer estranho, mas vale a pena tentar...” O poeta leu até o fim, e depois releu. Pensou consigo mesmo, pasmo. “Fui convidado para um casamento. Para celebrar um casamento...”
Era isso. Eliza Muto e Stefan Gan tinham decidido oficializar uma união que já existia de fato havia seis anos. Como não eram religiosos, dispensavam padres, pastores, rabinos e até um juiz de paz em troca de um poeta. “Afinal, quem mais capacitado para celebrar o amor do que o meu poeta favorito?”, perguntava a noiva, não sem sinceridade, mas com uma ponta de astúcia. Poderia haver argumento mais definitivo? O poeta acedeu. A delicadeza do pedido era sublime.
Carpinejar tomou um avião e no dia 29 de março, um sábado, desceu em São Paulo. O casamento estava marcado para as 6 da tarde, numa chácara da Vila Mariana. Às 5, já esperava na recepção pelo noivo, que viria buscá-lo. Nunca o vira —“Sinceramente, não conhecia ninguém: padrinhos, pais, parentes, amigos... iria para uma festa sem nenhum vínculo, a não ser a poesia” —, mas não tinha dúvida de que seria reconhecido.
Poetas gozam do direito a certas liberdades, e, no que diz respeito à etiqueta do vestuário, Carpinejar é um homem livre. Para a cerimônia, escolheu uma “calça esverdeada fashion”, uma camisa de botões de madrepérola (que, fosse outra a ocasião, formariam um belo time de botão) e um lenço carijó gaudério, preso por um anel no qual se entrelaçavam a bandeira do Rio Grande do Sul e a do Brasil. Ornando o rosto, óculos verdes louva-deus. O corte à máquina deixara sua cabeça calva, com exceção de três letras capilares: POA — vistosa homenagem aos 236 anos do torrão natal. A mão direita mostrava-se convencional. A esquerda, não: trazia as unhas pintadas de marrom, uma pequena traição à mulher, que agora disputava o horário da manicure com o marido. A quem lhe perguntasse sobre a idiossincrasia, Carpinejar oferecia respostas elaboradas: “Para não confundir meu filho: duas mãos pintadas são de mulher, uma é de poeta; ser conduzido por uma mão feminina, mesmo que seja a minha, é muito melhor; e também serve para não lavar louça: minha mulher nunca podia, alegava que estragava as unhas. Agora eu também não posso. Passamos a comer fora.”
O noivo chegou às 17h40 e não hesitou: era aquele o poeta. Entraram numa van, na qual já estavam os pais do nubente. Eram americanos e não falavam português. Muito menos esperavam por semelhante aparição. Não souberam disfarçar uma expressão de “Ah, Deus, é ele?!”, mas nada além: foram gentis, até porque não tinham escolha. Chovia a cântaros.
Ao chegar ao local do enlace matrimonial, a abundância semiótica de Carpinejar fez com que variadas pessoas o tomassem por: a) líder de uma seita regionalista desconhecida (lenço gaudério); b) curandeiro (unha pintada de marrom); c) membro de uma facção budista (cabeça raspada); d) homem-propaganda (um segurança decifrou POA como marca de água mineral); e e) cover de Bono Vox (óculos louva-deus). A desorientação não era apenas dos circunstantes. Também o poeta se viu confuso. A noiva entraria em cena somente no momento do altar — mas a noiva é quem o tinha convidado. “O que vocês combinaram?”, perguntou, ansioso, ao noivo. “Nada”, disse o rapaz, incapaz de desanuviar o celebrante. “Nem na minha primeira sessão de autógrafos fiquei tão nervoso”, confessaria depois Carpinejar.
Quando finalmente a noiva abriu espaço — de braço enlaçado ao do pai, luminosa, com seu vestido branco e suas tatuagens de flores derramadas nos ombros desnudos —, instalou-se o pânico. “Onde eu fico?”, perguntou ela ao poeta. “Por Deus”, contaria Carpinejar, “eu acreditava que não imitaríamos uma encenação oficial. Na ausência de coordenadas, assumi totalmente o sacerdócio. Distribuí os padrinhos, armei a entrega das alianças, improvisei os passos.” E esperou pelo milagre.
Que demorou a vir. Na primeira palavra, o microfone falhou. Uma criança gritou. Relampejou forte. O poeta pigarreou. E disse: “Sem querer, o casal está realizando o sonho da minha mãe. Ela queria que um de seus filhos fosse padre. Não entendia a desigualdade divina, que deu à família vizinha três padres e uma freira, mas para ela não reservou ninguém”. Sentiu que reassumira a própria voz. Os noivos sorriam, os padrinhos também, havia algo de bom no ar.
Ele então decidiu cumprir a função para a qual fora chamado: foi poeta. Olhou para os dois e disse: “O tempo passa rápido para os outros, não para vocês. O tempo está vivo em vocês. Minucioso. Detalhista. Obcecado. É como ficar o dia inteiro em casa. E, de repente, perceber que anoiteceu. ‘Já anoiteceu’ é uma das expressões mais bonitas. Significa que não controlamos as horas. Casar é anoitecer. É quase perguntar: ‘Como chegamos aqui?’”
E, como os noivos sabiam muito bem como haviam chegado ali, o poeta encerrou: “Stefan, você ama Eliza?” Ela disse que sim. “Eliza, você ama Stefan?” Stefan amava. “O ‘Eu te amo’ dispensa qualquer nova pergunta. O que vier depois será resposta, como este casamento. Eu abençôo os noivos, casados em nome da poesia.” O casal se beijou, e o sacerdote desconfia que os dois choraram dentro do beijo.
* Publicado originalmente no site da revista Piaui.
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