terça-feira, 13 de março de 2007

“Porque nenhuma história é pequena”

As insignificâncias de certos personagens têm um sentido antagônico para o olhar de uma repórter com uma luz diferente para compreender a realidade. Essa compreensão extrapola os cinco sentidos habituais, usados pelos jornalistas mais presentes no nosso cotidiano. Eliane Brum, quando escreve uma reportagem, não nos mostra penas o usual. Ela vai além. Dotada de uma sensibilidade impossível de ser verbalizada, consegue colocar à disposição do leitor a essência dos acontecimentos e dos seus protagonistas. Os anônimos das crônicas-reportagens de Eliane Brum não renderiam uma nota de página na maioria dos jornais brasileiros. Todavia, com seu talento, transformam-se em verdadeiros diamantes brutos, prontos para serem lapidados, explorados e apresentados ao público. Com mais de 30 prêmios de reportagens nacionais e internacionais, conterrânea regional de Ijuí, Eliane Brum se tornou uma autoridade do jornalismo. Um dos seus maiores méritos foi ter inaugurado um novo estilo na imprensa brasileira. Diferente de tudo, “A Vida que Ninguém Vê”, publicada originalmente nas páginas do principal diário fora do eixo Rio/São Paulo, o jornal Zero Hora, ganhou uma projeção sem precedentes. Recentemente, o material foi transformado um livro editado pela Arquipélago Editorial. Atualmente, Eliane é repórter especial da revista Época. Por telefone, ela conversou com a nossa reportagem:

Everton Maciel

Reportagem – Como foi a experiência de ter saído da região Noroeste para trabalhar primeiro na Zero Hora e depois ganhar o Brasil?

Eliane Brum – Foi bacana. Eu comecei em Porto Alegre. Entrei na Zero Hora para fazer um estágio – que ganhei como prêmio na faculdade – e fiquei 11 anos. Depois tive o convite, e vim para a Época. Nunca pensei em morar em São Paulo, mas acabei vindo. Assustei-me um pouco no começo. Mas deu tudo certo.

R – Quando tu sentiste que a “A Vida que Ninguém Vê” ganharia tanta repercussão?

Eliane – Para mim o projeto já foi importante. Mesmo sem ter muito claro a idéia de formato. A intenção era fazer uma crônica do cotidiano da cidade. Isso foi ganhando forma. Comecei, mesmo sem me dar conta, a contar a história das pessoas anônimas, de acontecimentos que nunca seriam notícia e histórias pequenas. Sempre acreditei muito nas histórias pequenas – aparentemente pequenas. Porque nenhuma história é pequena. E acho que esse é o segredo da “Vida que Ninguém Vê”. A repercussão começou aí no Rio Grande do Sul. As pessoas se identificaram com as histórias, descobriam coisas nas suas próprias vidas. Coisas, muitas vezes, despercebidas. Então, depois de 1999, esse conjunto de reportagens ganhou o Prêmio Esso regional/1999. Foi o primeiro reconhecimento nacional.

R – Foi o editor da Zero Hora, Marcelo Rech, que te fez a proposta para as crônicas-reportagens...

Eliane – Até me lembro! Foi uma tarde, e ele me fez essa proposta maravilhosa. Mesmo sem ter muita idéia de como seria, eu tive total liberdade para encontrar o formato. E, inclusive, o nome foi idéia do Marcelo: “A Vida que Ninguém Vê”. Adorei!

R – A diferença do que tu fizeste em “A Vida que Ninguém Vê” para o literojornalismo é que, no estilo reportagem-romance, aquilo que não se sabe, inventa-se; mas nas reportagens-crônicas tu tens que coletar cada suor de tuas fontes. Como funciona esse processo?

Eliane – Acho que o jornalismo não é só o que é dito. É o cheiro das coisas, as manias que as pessoas demonstram enquanto falam, a textura dos móveis. Ou seja, todo um conjunto de coisas, que, quando estamos em algum lugar, a gente percebe, não só pelo que a gente ouve. Então, acho triste quando o jornalismo acaba se reduzindo ao que o fulano disse ou deixou de dizer. Temos que levar em conta todos os fatores. Toda essa coisa mais complexa que é a vida da gente, que tem cheiro, tem textura. Tem o jeito que a gente mexe no cabelo, que a gente fala. E “A Vida que Ninguém Vê” é totalmente reportagem. Não tem nada inventado, não. Não tem nada romantizado. Numa das histórias – que é muito triste –, “O enterro de Pobre”, quando eu conto que o caixãozinho daquela criança estava sendo enterrado, no Campo Santo da Santa Casa (onde se enterram os indigentes em Porto Alegre), eu falo que um sabiá cantou. Quando eu digo isso, não estou inventando nada. Se eu fosse inventar um pássaro para cantar, não usaria um sabiá. Se eu estivesse escrevendo ficção, nunca escolheria um sabiá. É um pássaro muito clichê (risos). Eu escolheria um outro pássaro. Mas se disse que o sabiá cantou, é porque o bichinho cantou mesmo. O jornalismo tem esse compromisso com a veracidade das coisas. Isso significa um trabalho muito mais complexo. Apurar o som, o cheiro, as texturas, e não só o que é falado.

R – Achas que algo mudou na forma de se fazer reportagens impressas desde que tu usaste essa nova fórmula? Sentiste que foi seguida por algum adepto do teu estilo?

Eliane – Eu acho assim: não inventei nada. Não tenho essa pretensão. Tem muita gente antes de mim, no Brasil e nos Estados Unidos, que trás tudo isso para o leitor, essa apuração mais abrangente, esse jeito de contar história. Essa tradição vem bem antes de mim. O que eu tenho, claro, é que cada um escreve com o seu estilo. Eu tenho o meu. Então, o que me deixa feliz é que encontro muitos estudantes de jornalismo, muita gente jovem que gosta e se identifica com o que eu escrevo. Eles querem saber mais e querem fazer esse jornalismo. É muito bacana. Para mim, o maior elogio que podem me dar, em qualquer reportagem, é quando me dizem: “Nossa eu estava lendo o que tu escreveste e parece que eu estava lá... estava vivendo aquilo”. Quando a pessoa pode me dizer isso, fico muito feliz. Porque, eu consegui passar todos os elementos daquela realidade, tanto quanto possível. E, por causa disso, ela conseguiu se sentir ali. Então, como repórter, temos essa responsabilidade para com o leitor. Acabamos sendo, naquele momento, não só os olhos, mas todos os seus sentidos, num lugar onde ele não conseguiu chegar. Mas me sinto muito feliz quando consigo inspirar alguém. Ainda mais no tempo em que vivemos: temos a internet – que é uma coisa maravilhosa, que mudou a vida de todos –, mas hoje muitas reportagens são feitas pela internet ou pelo telefone. Esses repórteres poderiam ir até os lugares pessoalmente. Acho que temos nesse contato a grande essência do jornalismo.

R – Quando tu sentiste que tudo isso poderia virar o livro que virou, e ter a repercussão que teve?

Eliane – Sempre ficou essa idéia de fazer um livro. Logo que o projeto terminou na Zero Hora (final de 1999), eu já comecei a ter essa idéia. Mas daí veio o convite para vir a São Paulo. Isso foi uma revolução na minha vida. Até que o Tito Montenegro, que é o dono da Arquipélago, que é uma editora nova – é meu primeiro livro com eles –, fez a proposta de transformar a “Vida que Ninguém Vê” em livro. Ele insistiu tanto. Eu devo isso a ele. O Tito me fez voltar para o projeto.

R – “A Vida que Ninguém Vê” virou A Vida que Ninguém Viu (resgate recente, na Zero Hora, de alguns personagens que foram objetos das reportagens de Eliane. Coluna assinada pelo jornalista Itamar Melo)...

Eliane – Eu vi! Fiquei muito emocionada! Ele escreveu muito bonito...

R – Se tu tivesses uma crítica para fazer ao jornalismo nacional?

Eliane – (Risos) Ah, eu fico triste. Acho que temos que retomar a tradição das grandes reportagens. O jornalismo vem perdendo um papel que ele sempre teve na História. A gente conta pela imprensa a história contemporânea do Brasil. Se um historiador, daqui há 30, 50, anos quiser saber como foi o ano de 2007, ele vai voltar os jornais e as revistas – que sempre foram fontes para isso. Eu acho que hoje a gente está perdendo um pouco esse lugar. Na imprensa nacional, a gente cobre muito os grande centros. E não cobre o Brasil todo. Por isso, creio que não exista um veículo que seja, efetivamente, nacional. Quando olhamos para outros lugares do País, olhamos com o olhar de curiosidade, meio etnocêntrico, sem entender aquelas realidade regionais. Por falta de investimento e de vários outros fatores. Esse espaço acaba sendo ocupado pelos documentaristas. Com a facilidade da tecnologia da câmara digital, por exemplo, tem gente em todo Brasil – isso é extremamente positivo – fazendo documentários sobre histórias, lugares, acontecimentos, onde o jornalismo da grande imprensa não chega, não cobre e não reflete. Esse é um fenômeno novo. E nós, como jornalistas, ficamos meio perdidos no meio desse processo.

2 comentários:

Patrícia Kolling disse...

Show a entrevista. E mais show o trabalho dela. Confesso, adoro fazer este tipo de trabalho de jornalismo em se pode apresentar na matéria todos os sentidos da vida: cheio, cor, som....
"O jornalismo tem esse compromisso com a veracidade das coisas. Isso significa um trabalho muito mais complexo. Apurar o som, o cheiro, as texturas, e não só o que é falado".

Diogo Mendes disse...

Gosto de jornalismo abrasador ( no maior sentido de feroz e ético ).Adorei a entrevista e aprecio muito o trabalho da Eliane Brum.Virei cliente do Blog.Parabéns!
Abraço.
Diogo Mendes