Eu tive um tipo de aneurisma. Na verdade, o que eu tive foi uma
experiência com várias palavras que eu nunca havia pensado em usar, a não ser
para me referir a outras pessoas. Aneurisma, cirurgia, artéria esplênica, banho
no leito. Nunca imaginei que isso fosse pra mim.
A gente sempre pensa que vai morrer de um jeito heroico. Claro, tem o grupo que sonha em morrer em total sossego, durante uma boa noite de
sono e outros que têm medo de morrer. Estou me referindo "a gente" normal, aqueles que gostam da vida. Esses querem morrer sem dor e bem de repente.
Como eu nunca havia entrado em um hospital antes, fazia parte do grupo
daqueles que pensam que nunca vão morrer. No máximo, eu tomava muito cuidado
quando estava fazendo uma atividade - mais ou menos - perigosa, como rappel,
ciclismo, uma corridinha ao redor do parque ou dirigir. Dirigir é, disparada, a
atividade mais perigosa que fazia, então, sempre tomei muito cuidado com isso.
Acho que a gente toma cuidado com tudo que gosta de fazer ou dá algum prazer
imediato. Eu, pessoalmente, adoro dirigir. Estava até fazendo habilitação para
dirigir ônibus. Quem sabe um dia eu compre um, e vá acampar por aí, ou sei lá.
Você nunca sabe quando precisará dirigir um ônibus. Sandra Bullock que o
diga, coitada. Independente de você precisar dirigir um ônibus ou não, aprender a dirigir ônibus me ajudava a melhorar minha percepção do trânsito em geral e isso ampliava a segurança, definitivamente. Então, fazia com cuidado.
Nunca pensei que fosse ter um derrame na artéria esplênica (sim,
existe uma artéria esplênica). Ainda por cima um derrame enquanto comia salgadinho no aniversário de um
ano da filha da minha vizinha. Em resumo é assim: o resultado de um sangue saindo pelo lugar
errado na região do baço traz uma dor abdominal terrível, uma cirurgia de
emergência, sem diagnóstico e um monte de médicos e enfermeiras correndo atrás
de um jeito de te manter vivo em uma mesa de cirurgia por cerca de cinco horas.
Nada disso eu lembro, porque estava apagadão, mas sei do esforço de todos eles,
porque não estava mais apagado quando me levaram para a UTI. Nunca pensei que fosse dar sorte de ter
ido para uma UTI, mas quando se tem sangue saindo pelo lado errado, dentro do seu corpo, os padrões de sorte e azar são razoavelmente alterados.
Então gosto de pensar que tive sorte de ter ido para UTI; sorte de ter contado com gente piedosa que
me trocou curativos, deu soro, alimentação parenteral e outros que foram até ao hemocentro
doar sangue para mim. Um punhado de sorte dos fisioterapeutas terem uma paciência contagiosa. E amigos honestos por perto é uma mistura de fortuna com virtú, muito mais do que mera sorte. Também dei sorte de ser +AB e bem pouco exigente sobre o
tipo de sangue que posso receber. Dei sorte quando os exames mostraram que a
cirurgia foi um sucesso, e muita sorte quando consegui caminhar pela primeira
vez depois de 72 horas em uma cama. Na UTI, você precisa reaprender a fazer algumas coisas, tipo caminhar, comer e tomar banho, mas isso só se você tiver muita sorte.
Cinco dias de UTI e outros cinco enfiados em um quarto de
hospital, e qual a moral da história? O máximo que posso fazer é agradecer os
médicos com uma garrafa de wiskey que não tenho mais condições de beber; agradecer as enfermeiras e todos os técnicos de enfermagem por terem me reensinado coisas básicas e me mantido limpo por tanto tempo, longe de infecções. É o máximo que dá para fazer.
No mais, é sorte. Torcer para
que as pessoas parem de se sentirem moralmente superiores, mesmo sendo tão
frágeis e avisar que aquele rapazinho que se matou no final do filme
Sociedade dos Poetas Mortos - afinal, a família não queria que ele fizesse
teatro! - é só um personagem chato e mimado servindo para moralizar pessoas
chatas e mimadas. Pois é, a história da moral mostra para a gente que não tem moral da história.
4 comentários:
Caramba 🙋😍 Quanto orgulho de você... Texto perfeito,...Moral da história é que hoje é o dia mais importante da nossa vida!! Amanhã talvez não venha!! Um abração pra vc querido amigo.
Perfeito 😉... Quanto orgulho de você meu querido amigo... Adorei o texto.Que bom ficou tudo bem contigo!!
Perfeito 😉... Quanto orgulho de você meu querido amigo... Adorei o texto.Que bom ficou tudo bem contigo!!
Bacana seu texto. Bem realista do ponto de vista do autor e da plateia que não teve o acompanhamento tão de perto durante seu "período de sorte". Dirigir um ônibus agora será fichinha. Acho que de tudo vale a perspectiva nova para muito além dos reensinamentos básicos. A finitude é nossa condição última e, em algum momento de azar, a última condição que teremos. Mas a moral disso tudo fica para quem assiste a vida de fora como para quem passa distraído pelo lado de fora de um hospital. Aqui dentro a TV não pega alguns canais e o plano não cobre tudo. Paciência.
Postar um comentário