domingo, 19 de novembro de 2017

O dia em que o Silvio conheceu a Rainha

Já devo ter falado do Silvio pra vocês. Ele é um barbeiro de humor duvidoso que trabalha aqui na Cidade Baixa. Um dos passatempos preferidos do Sílvio é jogar areia no churrasco dos outros. Nunca vi tamanho talento reunido em uma só viv'alma para fazer todo mundo se sentir ruim. Basicamente, ele vê o lado negativo de tudo. Se você chegar ali contando que ganhou na loteria, a primeira coisa que ele vai lembrar é dos impostos que devem ser pagos; depois, da encheção de saco que deve ser ajudar os parentes desafortunados. Não que ele seja uma pessoa ruim. Só não vê graça nenhuma na vida. Se o Guga Kuerten, a pessoa mais feliz da Terra (praticamente um Labrador Retriever no corpo de um humano), for cortar o cabelo ali, sai deprimindo e com pensamentos suicidas. O Silvio não só é mal-humorado, ele acha um completo absurdo que as outras pessoas andem por aí saltitando de felicidade.

Então, um dia eu fui cortar o cabelo e, logo depois de cumprimentar o Sílvio e me sentar na cadeira, falei para ele que ficaria uns meses sem aparecer ali. Eu havia arrumado uma viagem para Londres para fazer um trabalho e ficaria um tempo por lá. "Putz... Europa! Tudo velho. Deve ser cheiro de mofo por todo lado", lascou o Silvio. "Pois é, mas tem bastante coisa pra ver: museus, bibliotecas. Além disso, Londres é uma das capitais mais famosas do mundo", remendei tentando manter o ânimo. "Bem capaz! Imagina só. Deve ser turistas chinês pra todo lado. Essa gente anda por tudo. Sei lá se ganham passagem do governo. E dizem que nem banho tomam. Soma isso com os europeus que não tomam banho mesmo, imagina só", retrucou ele.

Falei da família real, da história de lutas e revoluções, da importância do império britânico no desenho do mapa, mas nada agradava o Sílvio. Tudo era um problema: sustentar príncipe vagabundo, arrumar problema com o governo, "atentados terroristas". Enfim. Terminou meu corte e eu saí de lá pensando que estava indo para um cativeiro de sequestro no Complexo do Alemão. Mesmo assim, fui-me para Londres naquela semana, e voltei só quase um ano depois.

Uma das primeiras coisas que fiz quando voltei foi ir no Silvio cortar o cabelo. "Mas ah! O guri que foi cheirar as calcinhas mofadas da rainha voltou", disse ele me cumprimentando. "Pois é. E se eu te conto o que aconteceu lá, tu nem acreditas", informei com pompa, ganhando atenção dos outros que estavam por ali esperando pra cortar o cabelo. "Não me digas que conseguiu um chá com a velha, naquele muquifo lá onde ela mora?", perguntou o Silvio fazendo todos rirem. "O Palácio de Buckingham? Não", respondi. "Mas ela falou comigo sim. Estava indo para uma celebração e eu estava na frente do palácio". "Falou contigo? Não diga! Aposto que entrou no carro e nem deu bola pros bocós ali esperando pra ver ela", chacotou ele. "Pois, eu estava lá. E ela saiu do carro e caminhou na direção da multidão. Deixou de entrar no carro pra falar comigo. Caminhou na nossa direção - até me arrepio de lembrar. Ela veio em MINHA direção, em linha reta, sem parar. Dois seguranças atrás dela, mas ela veio", contei emocionado. "Dá onde!! E ela disse alguma coisa? Falou com você?", perguntou o barbeiro já curioso.

"Falou. Veio pro meu lado só pra falar comigo. Eu baixei a cabeça. Estava muito emocionado. Mas ela veio em minha direção e colocou a mão no meu ombro", falei quase chorando. "E o que ela disse? Diz duma vez!", insistiu o Sílvio. Olhei pra ele e - finalmente - terminei a história: "Ela disse 'que cabelinho mal cortado, hein, meu filho?'"

Um comentário:

Editor / Revista Afinal disse...

Muito bom! Como sempre! Abraço!