quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Diário de Londres - Como o transporte público deveria funcionar

Tenho acompanhado a nova onda de protestos a respeito do transporte público de São Paulo sem dar muita importância. Sou a favor dos manifestantes quebrando tudo e também sou a favor da polícia baixando o sarrafo. Sem sangue, suor e lágrimas não existe liberdade. Não chegamos ao nível da liberdade, ainda. As nações que já chegaram lá aderem rapidamente ao lema da "eterna vigilância". Nós ainda não estamos em condições de vigiar nada.

Sobre o transporte público, tudo que posso narrar é minha experiência com o uso do mecanismo aqui no cotidiano de Londres e em algumas [poucas] viagens curtas que tenho feito. Realmente, é algo público e que funciona para todos e em serviço de todos. O nome da agência controladora diz muitos sobre o objetivo do transporte público TfL, Transport for London. Não é transporte "de" Londres. É "para" Londres. Londres é tratada como um gênero, uma pessoa, mas nunca como um mero lugar no mundo. Parece um detalhes abobado, mas é a forma de ver a coisa. E isso faz toda a diferença. 

A maioria das pessoas no Brasil acha que o problema do transporte público recai sobre dois fatores que se opõem: "quanto" é cobrado e "como" o serviço é oferecido. São as referências financeiras e de qualidade. Eu posso afirmar categoricamente que a forma do brasileiro interpretar isso não está só errada, mas está completamente invertida. Essa interpretação favorece apenas quem detém a concessão do sistema e o duelo idiota por oferecer um serviço cada vez pior, aumentando os preços sempre que possível não termina nunca. 

A forma correta de se enxergar a coisa é "como" se cobra e "quanto" se oferece. Exatamente, o contrário. Simples, mas difícil para o raciocínio latino-americano-subdesenvolvido-médio, ou seja, a maioria dos brasileiros, desde o empresário capitalista dono da concessão, até os militantes do Catraca Livre, um grupo de primatas tão limitado quanto o primeiro. 

Qualquer sistema de transporte que não sobreviva de um raciocínio medieval precisa compreender a diferença entre consumidor e usuário. É completamente insólito imaginar que o trabalhador que precisa todo dia se deslocar entre determinado trecho desembolse o mesmíssimo valor que um turista eventual, ou alguém que simplesmente chegou a uma cidade para participar de um evento passageiro, ficar ali por por uma semana ou dias de trabalho ou negócios. Um sistema de transporte com uma cobrança justa precisa pensar em detalhes que o cérebro brasileiro não atinge, porque justiça envolve complexidade. Caso você queira saber quanto custa para andar de trem ou ônibus em Londres, aqui está a lista, mas já adianto: não há uma resposta objetiva. Cada caso é um caso diferente tratado com a especificidade que merece. É complexo e justo. 

Outro elemento central é "quanto" de transporte público é oferecido. Essa pergunta é, mais fundamentalmente ligada à qualidade do serviço, atinge a regularidade da oferta e, principalmente, a ampliação permanente de linhas, pontos de coleta e terminais, sempre que surge a necessidade de aumentar a oferta para atender a demanda crescente. 

Na cobertura disso tudo, existe um elemento secundário que muitos idiotas da esquerda transforam em elemento principal: o administrador do sistema deve ser uma empresa pública ou privada? A resposta é auto-evidente, mas vou escrever para que não reste dúvidas: tanto faz. Isso. Se o serviço for de qualidade e por um preço justo, podem montar até uma cooperativa de analfabetos funcionais, pouco importa quem vai administrar as linhas de concessão, contanto que o controle da cobrança e a regulação do setor seja completamente transparente. Aqui em Londres, quem administra, como eu disse, é a TfL, mas a maioria das linhas são privatizadas para empresas que estão sob o controle público e recebem da agência para prestar o serviço. Atrasos, descontinuidade, acidentes, tudo isso gera multa. Falar em multa é falar de dinheiro que não cairá, no futuro (sempre no futuro!), na conta do fornecedor do serviço. Nenhuma dessas coisas, está desligada do que eu apontei como quantidade. É inconcebível que o concedido coloque as mãos no dinheiro, sem a intermediação da agência controladora. Primeiro se presta o serviço, depois se recebe, caso esteja tudo nos eixos. Inverter isso, como acontece no Brasil, é burrice. 

Mesmo os elementos que parecem dizer respeito ao conforto, são simplesmente quantitativos, como é o caso de paradas em boas condições, estações preparadas para atender a superlotação e mesmo a existência ou não de climatização, tanto nos veículos quanto nos pontos de concentração e espera de passageiros. A logística do sistema  também é outra refém do fator quantitativo/valorativo.

Bonus track

Eu sinto uma profunda vergonha de saber que sou cidadão de um país onde existe a figura do "cobrador de ônibus". Isso é vexatório! O simples fato da existência desse personagem depõe muito contra o sistema ao qual estamos submetidos no Brasil. E informa o tipo de cultura política e pública que temos. É inconcebível que seja necessário empregar esforço humano para uma tarefa mecânica. Realmente, qualquer um que não pertença ao Catraca Livre ou ao grupo de concessionários precisa ficar indignado com isso. Se cair de quatro na grama, essa gentalha sai pastando.

Qual a melhor maneira de gerar renda, riqueza e LUCRAR com o transporte público? Com ampliação da necessidade de uso do sistema! Mais: com as obras que essa ampliação geraria e com o incentivo permanente para que novos usuários se insiram ao sistema. Só para citar o exemplo de Porto Alegre, no ano passado, o número de passageiros de ônibus caiu. Vem caindo e vai cair cada dia mais. O indivíduo vai para o caderno, faz as contas e vê que dá na mesma enfrentar o trânsito. A lógica econômica não tem piedade da burrice. A economia não se preocupa com natureza por conta própria, seus estúpidos! Se os atrasos são equivalentes e tudo inflaciona ao mesmo tempo, combustível e passagem, vamos de carro.

Não existe uma solução mágica para resolver o problema do transporte público no Brasil, mas uma delas é bastante prática ou serve, ao menos, como ponto de partida: a extinção da legislação absurda que trata o vale-transporte como um "direito" do trabalhador. Essa aberração jurídica com todas as características assistencialistas não só agride o raciocínio econômico, onerando o setor produtivo, mas também prejudica o trabalhador, que vê sua renda ser defasada para se transformar em lucro para a empresa concedida de transporte público local. É uma aberração completa e em todos os sentidos. O salário é desvalorizado em troca de um poder de barganha ridículo que tira do trabalhador o poder de optar pela melhor condição para se deslocar para seu local de trabalho, seja de carro, de bicicleta ou fazendo cooper, como muito vejo aqui em Londres.

Querem resolver o problema? Resolvam com sangue, suor e lágrimas. 

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