sábado, 3 de agosto de 2013

O sofrimento alheio é nossa mendicância pessoal

Realmente não entendo a publicidade anti-esmola. André Dahmer, um dos maiores cartunistas do Brasil, dono de um estilo único, narrou o seguinte no seu Feicibuqui:

Meu dia começou assim: eu estava próximo a um ponto de ônibus. Um homem descalço e imundo me pede dinheiro. Abro a carteira, não tenho troco, lhe dou dez reais. Uma filha da puta vê a cena, balança a cabeça e sorri com raiva. Segue o nosso diálogo:
FILHA DA PUTA: - Pronto, dez reais! Ele já não vai pensar em arrumar trabalho hoje...
EU: - E você daria trabalho a ele?
FILHA DA PUTA: - Se ele tomasse um banho, talvez.
EU: - E você ofereceria um banho a ele?
FILHA DA PUTA: - ...
EU: - Como você pode carregar uma cruz no peito? Que tipo de cristã é você?
FILHA DA PUTA: - Essa gente gosta da rua. É mais fácil viver assim.
EU: - É mais fácil viver assim? Então vá morar na rua, sua filha da puta!


A crítica do Dahmer também já me preocupou. Nasci e cresci numa região habitada, no período pré-colombiano, por índios. Não vou discutir se eles eram ou não uma civilização organizada, se têm ou não direito sobre as terras e blá blá. Não me interessa. Me importa o presente. No presente, ter a descendência indígena e nascer uma família de índios, dentro de uma reserva ou aldeia, significam duas coisas: a) busque se civilizar e vá fazer alguma coisa na cidade; b) mendigue. 

Como vocês podem ver, são muitas alternativas. A liberdade é total. 

Certa feita, a cidade já estava de saco cheio dos índios mendicantes em um dos principais pontos de concentração, um supermercado que ficava no centro da cidade. As famílias pedintes passam o dia por ali, e instruíam as crianças para sensibilizar os transeuntes e pedir esmola. Isso perturbava o visual classe média do local. Como resolver o problema? Estimulando as pessoas a não darem esmolas. Genial, né? 

Colocaram por lá placas, falando que esmola era coisa do demônio e um lista de entidades assistenciais para as quais os interessados podiam se dirigir se quisesse ajudar. Nenhuma dessas entidades assistenciais era governamental, por um motivo muito simples: no Brasil, o governo não sabe fazer assistência social de outro jeito, apenas distribuindo dinheiro, ou seja, esmola.

Não dar esmola com base no genial argumento de que se incentiva o ócio e a vagabundagem é algo tão estúpido que me mantém distante de preocupações. O que realmente me preocupa é o fato das pessoas, com isso, camuflarem seus reais motivos para não darem esmola. Meu real motivo para não dar esmola consiste no seguinte: eu não me comovo com a dor alheia isoladamente. Disfarçar isso com frases do tipo: "assim ele não precisa trabalhar mesmo"; "tá na rua porque quer"; "é problema do governo", só acaba reforçando a hipocrisia. Prato cheio para um psiquiatra. Eu trato mal e quero mais que pessoas com esse raciocínio tropecem e quebrem o crânio. 

O fotógrafo Kevin Carter não foi "tocado" com a imagem da criança faminta do Sudão. Ele recebeu o prêmio Pulitzer e não deu muitas explicações sobre ter ou não ajudado a tal menina da foto. Não se sabe o destino dela. 

Por quê? 

Porque Carter via crianças morrendo do fome durante todos os malditos dias que passou no Sudão e, para ele, aquilo era só mais um dia de trabalho. Nós, cretícos (mistura de cretino e crítico) de plantão, tivemos nossa pizza interrompida durante o jantar pela imagem e nos julgamos no direito de criticá-lo por não ter resolvido salvar a criança. Nossa esperança espera sentada que aquela criança represente o Sudão inteiro! A África inteira! Se víssemos a mesma criança, no centro de qualquer cidadeca do Rio Grande do Sul, nos preocuparíamos. Mas elas estão à disposição de quem quiser ajudar, aos montes no interior e não nos preocupamos. Não queremos as ajudar? Só se as vermos. Simplesmente, não queremos ver. 

Eu também não costumo dar esmolas. E não me incomodo com pessoas que não gostam de dar esmolas. O que perturba qualquer um que tenha um doze avos de cérebro é a hipocrisia. Se você não gosta de dar esmola, use o argumento correto. E consiste apenas em aceitar e admitir a seguinte sentença: eu não me comovo com o sofrimento alheio. 

Nenhum comentário: