quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Carta aberta a um par de pés


Querida,

Sinceramente, gostaria de lembrar a primeira vez que vi seu par de pernas. Meus sentimentos ficariam melhores explicados e, ao menos potencialmente, teria condições de lhe tirar das minhas alucinações mais banais. Mas não consigo recordar nada disso. Espaço e tempo foram conceitos físicos suspensos naquele instante. Não me recordo o local, muito menos a data. Suplico desculpas!

Como não tenho nenhuma referência mais significativa a seu respeito, pretendo falar das poucas coisas que me perturbam a memória. Na ordem dos acontecimentos, são elas:

Quando vi suas pernas saindo de uma planta do Niemeyer e se movimentando na minha frente, primeiro, agradeci a existência dos óculos escuros; depois, duvidei que minha vida pudesse melhorar. Percorrendo aqueles curtos e torneados pedaços de metro, meu ateísmo já estava frágil. Deve haver uma explicação divina, sim, para esse tipo de obra. Logo que meus olhos estacionaram nos seus tornozelos, eu praticamente estava procurando um padre e me matriculando na catequese. Se eu fosse um iluminista, sentiria vergonha de mim mesmo.

Não demorei muito para encontrar os seus pés e viver a melhor experiência sensorial da minha vida. Nunca, em toda minha existência rançosa, olhei metatarsos tão arredondados e perfeitos. A forma como eles se integravam com as canelas estava perfeitamente alinhada. Não existia um único sobressalto. Nenhuma interrupção era capaz de perturbar aquela sincronia. A fíbula, tão discreta no encerramento das suas atividades, fazia parte de um contexto sem se preocupar com mais nada. Era como se aquele pequeno osso lateral servisse para cumprimentar o início de cada um dos seus pés com um beijo. Um selinho suave, mas eterno.

Percorrendo cada um dos seus pés, pelas laterais até a ponta, havia uma pequena sapatilha vermelha. Aveludada e lisa. Sem nada. Nenhum pingente. Nada de fivela. Absolutamente nenhum adorno era capaz de concorrer com o conteúdo interno do calçado. O dorso de cada um dos pés mergulhava para dentro de cada mar vermelho particular com a elegância de um nadador olímpico em câmera lenta. É sempre impossível saber a profundidade desses locais olhando de fora.

Meus esforços para imaginar o desenho dos seus dedos estavam me levando à sandice. Preocupado com minha saúde mental, pensei que os dedos, escondidos, eram uma boa justificativa para imaginar defeitos e reestabelecer a sobriedade da alma. Confesso: imaginei joanetes de todos os tipos e tamanhos. Pensei em dedos desproporcionais. O dedão menor que o seu colega mais próximo. Visualizei unhas encravadas de todos os formatos e tamanhos. Mais tarde, passei a imaginar uma sola mal cuidada, garrão rachado ou coisa do gênero. Minha infelicidade era tanta que não conseguia mais unir as coisas. Já estava colocando unhas encravadas no garrão e alterando o tamanho das solas dos pés. Uma completa estupidez. Minha misericordiosa tentativa de me salvar não fazia o menor sentido. Só a imagem dos seus pés era capaz de produzir algum efeito sensitivo no meu corpo. Desisti.

O esquerdo estava em repouso, cerrado no chão, sério, mas solerte para o mundo. O direito se divertia como uma criança em um playground, saracoteava bastante livre chutando o ar. Chutando, não! Massageando o ar! De pernas cruzadas, cada um deles tinha uma personalidade própria. No desespero de precisar algo para me amparar, foquei os olhos no seu pé direito. Foi quando aquela pequena plataforma vermelha que escondia o conjunto da obra deu uma leve deslizada. Boa parte dos dedos ficou exposta, e o tornozelo inteiro ganhou o mundo todo. Todas as minhas tentativas de recobrar a consciência foram para o inferno. A sola do pé era perfeita. Parecia nunca ter tocado o chão ou entrado em calçados vagabundos. A única comparação era absurda: só um bebê poderia ter as solas dos pés tão virgens e sem rugas. O movimento que fez você recobrar a postura e vestir novamente seu pé direito foi tão lento! Os dedos tiveram tempo para me cumprimentar. Cada um deles a seu modo, com uma voz própria. Mas todos em coro, sem desafinar. Do minguinho ao maior – é impossível chamar de dedão! – eles eram um quinteto de irmãos perfeitos. Cada um respeitando o tamanho do outro. Iniciavam curtos e terminavam arredondados. Os mais ofegantes suspiros, diante das mais belas paisagens do mundo passariam vergonha perto do meu deslumbre.

Assim que seu pé submergiu para dentro da sapatilha, ele voltou a encontrar o colega em repouso no chão. Suas pernas descruzaram-se e, ambos, sem pestanejar, iniciaram uma marcha militar: rítmica, mas simpática. Finalmente entendi o que a ONU quer dizer com “tropas de paz”. Na medida em que eles se distanciavam, o mundo recobrava sua luz natural. Era horrível! Era uma Porto Alegre cinzenta. Não sei bem. Logo que aqueles pequenos pontos vermelhos seguiram seu rumo, dobrando a esquina, voltei a mim. Reposicionei o cigarro na boca, e nunca mais fui o mesmo.

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