quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Dia em que Eu Fui Pai

Só vive com dignidade quem já foi obrigado a escolher entre uma vida rodeada de polêmicas e uma vida hipócrita e escolheu a alternativa mais difícil. Sempre que alguém perguntar se você se acha melhor do que as outras pessoas, não responda imediatamente. No mínimo, você já está no caminho certo. Ser melhor do que a média não é lá um grande mérito. Mas, de jeito nenhum, pode ser considerado um defeito.

Eu fui pai por volta de dois minutos na minha vida. Foi num belo dia de sol em que eu estava saindo do prédio onde dividia apartamento com outros estudantes. Na frente do prédio, há uma dessas lixeiras grandes. O zelador do prédio conhecia os horários corretos para colocar o lixo reciclável na rua. Geralmente, ele amontoava caixas de papelão e garrafas de um jeito que facilitasse a vida dos catadores e não prejudicasse a estética da calçada. Fazia um bom trabalho. Pois eis que eu, no referido dia de sol, estava saindo de casa para ir não-sei-aonde. No momento em que eu abri a porta do prédio, um moleque, do alto dos seus 15 ou 16 anos, estava voltando da escola com um grupo de outros guris e algumas meninas. Para chamar atenção da malta, o pequeno cretino resolveu meter as duas mãos na lixeira de recicláveis e, num único golpe, colocou vários quilos de papelão para o ar, esparramando pela calçada o objeto de interesses dos catadores e o trabalho do zelador do prédio que, aliás, já havia cumprido seu turno de trabalho e ido para casa.

Não me lembro exatamente o que passou pela minha cabeça nos dois minutos seguintes, nos quais eu fui pai. Mas não foi uma atividade mental muito nobre para servir como uma experiência saudável e ser compartilhada. Mais rápido que o ar, antes que as caixas de papelão se espalhassem completamente pelo chão, eu já tinha completado uma pequena corrida de quatro ou cinco passos e colocado as mãos na camisa daquele moleque. Na medida em que os outros corriam cada um para um lado e todos para bem longe, baixei a mão e dei três bofetadas suficientemente fortes para colocar o guri no mesmo nível do mar em que estavam as caixas de papelão que ele deixou espalhas pelo chão. Como sou destro, lembro de ter agarrado ele pelas costas com a mão esquerda e, com a direita, golpeado. Levantei o moleque do chão com dois pontapés e, já com ele aos prantos, o fiz recolher as caixas e colocar no lugar. Ele chorava e eu dizia que seria pior, caso ele não me obedecesse. Rapidamente, ele jogou as caixas de uma forma que ficassem amontoadas no lado de cima da lixeira. Não fez um trabalho tão bom quanto o do zelador. Mesmo assim, já estava do outro lado da rua, antes de eu pensar em inspecionar o trabalho.

Não me orgulho de saber que eu estaria preso, se tivesse o azar de uma viatura da Brigada Militar resolver passar por ali naqueles dois minutos em que eu fui pai. Fico pensando se, do ponto de vista utilitário, minha reação violenta, realmente, seria capaz de fazer aquele guri de escola pensar duas vezes quando resolvesse fazer a mesma coisa para chamar atenção das menininhas de uma forma estúpida. Não consigo encontrar resposta para essas possibilidades. Tudo que me vem à mente, quando penso sobre meus dois minutos de paternidade, é o final de Memórias Póstumas de Brás Cubas:
Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.

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