sábado, 10 de setembro de 2011

Jeremy Bentham: a fundação da vanguarda

Enfileirados, os homens mais importantes da história da filosofia seriam facilmente confundidos com candidatos a um hospício. Uns mais excêntricos; outros menos. Excentricidade é uma palavra estranha. Parece que foi criada, às pressas, para identificar pessoas malucas com dinheiro. Como muitos filósofos não tinham grana, não preciso do adjetivo "excêntrico". A maioria eram doentes mentais, em estado preocupante. Doidos, mesmo. Nietzsche morreu louco e mal amado; Kant, um chatonildo, dizia que mulheres eram úteis apenas para conversar amenidades e tomar vinho, "filosofia séria era papel de homem"; Rousseau era tão chato e insuportável que brigou com toda a corte francesa e passou muitas dificuldades financeiras; Marx -além de barbudo - algo que já denuncia muita coisa - era um incoerente em estado terminal. O pai da esquerda moderna queimou o capitalismo até a morte, mas escolheu a Inglaterra liberal e industrializada para morrer. Precisou fugir da Alemanha, censora do pensamento crítico e semi-feudal do século 19.

Por falar em século 19, entre todas as mentes doidonas da história da filosofia, há uma que faz pouco sucesso entre os pesquisadores brasileiros, mas era a mais curiosa de todas. Mesmo que sua teoria tenha caído no ostracismo, o cara teve uma vida muito louca. Verdade. Pouco restou sobre a vida pessoal de Jeremy Bentham. Como ele foi tutor de John Stuart Mill, várias referências foram feitas a Bentham na autobiografia de Mill, uma figura bem menos esquisitona que o professor.

Conta-se que Bentham trabalhou tanto no Panoptico, tentando reformular o sistema carcerário britânico, que dormia no estaleiro onde criava suas maquetes. O termo "deontologia" é atribuído a ele. Parece pouca coisa, mas a palavrinha grudou. Hoje é um dos conceitos mais recorrente da filosofia. Serve para identificar as teorias filosóficas ligadas à ética do dever, em contrapartida com a ética das virtudes e os modelos teleológicos.

O utilitarismo clássico também é uma invenção de Bentham. Leitor atento de Hume, aplicou o hedonismo epicurista aos problemas sociais da Inglaterra em processo de industrialização. Parece pouca coisa, mas o homem foi um grande cientista da moral e da legislação. Os princípios elaborados por ele não são apenas mais positivistas que os de Augusto Comte. São mais sóbrios e conduzem a finalidades mais interessantes. Melhor: não conduzem a uma religião da humanidade, burrice total de Comte. Uma idiotice tão grande que só poderia ser fruto da filosofia francesa.

Bentham não era assim. Sua insobriedade era praticada no cotidiano. Não na teoria. Ele, por exemplo, dedicava notas de rodapé de suas obras teóricas de filosofia moral e política às causas práticas. Por exemplo, no século 19, já sabia que os animais devem ser levados em consideração moralmente. Leia vocês:

Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria o fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim se são passíveis de sofrimento.

É isso. Não preciso nem comentar que a Europa do século 19 se importava tanto com bem-estar dos animais quanto se importa hoje em dia com os animais latino americanos e africanos. Tsc, tsc, tsc... esses europeus! Nunca foram muito sensíveis aos problemas dos outros. Bentham não. Olhava para frente! E batizou o utilitarismo com um diferencial inédito até hoje na filosofia: os olhos voltados para o futuro, motores do consequencialismo e da ciência séria. Excluindo o movimento utilitarista, a filosofia continua sendo a vanguarda da retaguarda. "A Coruja de Minerva", de Hegel, "alça voo ao fim da tarde, depois que a história da humanidade já está se eclipsando. A filosofia explica como o pensamento funcionou num passado recente". Também acho bobagem. Isso aí vale para muitas escolas filosóficas. Não para o utilitarismo, claro. Graças a Bentham.

Como eu disse, Bentham foi um esquisitão. Entre suas maluquiceces, a que realmente ficou para a história foi sua morte. Nos últimos anos de sua vida, o empirista inglês estava testando novas formas de mumificação na University College London. Vendo a velhice chegar - a partir de um método científico, criterioso e avançado de observação empírica, ele notou que nenhum ser vivo antecedente ficou para semente, logo... -, Bentham tentou adiantar os trabalhos com suas pesquisas de mumificação. Foi aos hospitais e procurou pacientes em estado terminais em busca de algum bom coração disposto a doar seus despojos para o bem da ciência e ser mumificado com as novas técnicas elaboradas por Bentham. Acreditem, ele não pensava em acabar com os cemitérios, apenas tinha uma visão um tanto quanto ecologicamente correta para sua época. Sabia que os corpos mal sepultados poderiam contaminar a água e causar doenças.

Um visionário! A ideia de Bentham era mumificar os corpos antes de sepultá-los. Sem fogo, sem gases de putrefação. Sabia das coisas esse Bentaham. Mas não adiantou as boas intenções do moço. Ninguém doou corpo algum para o bem da ciência.

Resultado: Bentham pediu aos seus alunos que concluíssem sua última pesquisa de qualquer jeito. Para concluir o empreendimento de mumificação, orientou os estudantes sobre como deveriam mumificar seu próprio corpo. Morreu no escritório. Trabalhando. Não foi levado para hospital. Direto para o laboratório. Um utilitarista até o último segundo da sua vida. Mais do que isso: um utilitarista enquanto seu manual de conservação de corpos ainda estiver funcionando e seu corpo se manter nas dependências do College London.

3 comentários:

Adriana Roos disse...

Interessante. E o manual de conservaçao de corpos, nao é utilizado por ninguem?
Ficou ele mumificado no colegio e depois? Pensemos tambem se todos os corpos fossem mumificados antes de serem sepultados, onde iriamos sepultar novos corpos depois de utilizarmos o cemiterio mais proximo ou o da familia? Pois sem a decomposição com a liberaçao dos gases putrificantes e contaminantes - mas extremamente necessarios no processo todo - onde seriam sepultados todos os mortos nao decompostos?

Everton Maciel disse...

Flor, duvido muito que o manual não tenha sido superado pela química contemporânea. A preocupação dele, no século 19, era evitar doenças epidêmicas patrocinadas pelo crescimento urbano da cidade de Londres, algo bastante contextualizado. Ele ainda está mumificado dentro desse colégio, um tipo de reduto cético (não cristão) erguido justamente para oferecer uma ciência mais livre frente às outras instituições de ensino britânicas da época. As últimas ainda muito ligadas a coroa britânica e, consequentemente, a igreja anglicana, submissa ao trono. Onde seriam depositados os corpos não decompostos? Boa pergunta. Até ofereceria abrigo, mas aqui em casa está lotado.

Adriana Roos disse...

:)
Abraço!