quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Fazendo um esboço

Juca Fortes

As cortinas estavam sempre abertas e de propósito ela aparecia na janela para enxugar os cabelos...

Varríamos lados opostos da mesma rua e tomávamos café da manhã na mesma padaria. O balconista me atendida do mesmo jeito todos os dias.

- E ai, tranqüilo?

- Tudo numa boa?

- Vai pedir o quê?

- Uma saltenha de frango e um suco de manga.

Ela entrava na padaria sempre com um ar do tipo, não estou nem ai pra vocês. Às vezes pensava em dizer qualquer coisa. Puxar assunto. Oi, como o seu lado da rua estava cheio de folhas hoje. Oi, você conhece o vizinho da casa verde com grades brancas? Acho que ele fez um gato na minha luz. Oi, você viu que o Papa chega ao Brasil amanhã? Sei lá, qualquer merda. E se ela fizesse cara de, e daí, quem disse que eu to a fim de falar contigo. Eu emendaria logo um: Qual o seu nome? Só pra não perder a viagem.

Todos os dias, no mesmo horário ela tomava banho e ia até a janela com uma blusa de alcinhas. Pelo vale escorria a mistura de suor e pudor que eu imaginava ter gosto de amoras, com romã e tâmaras (adicionando álcool seria o melhor licor do mundo). Era um ritual ver o espetáculo, todos os dias, menos sábados e domingos, dias de Antonia - boa moça que morava a uns 80 km, bem de vida, fazia tortas de ameixa seca. Odeio ameixa seca.

Um dia me cansei e perguntei o nome da menina à Roberta, a confeiteira que tinha um par de coxas de parar o transito. O marido dela teve de instalar sinalização aérea nos chifres. Os córneos já estavam atrapalhando o tráfego das aeronaves.

- O nome da menina é Regina. Ela mora com um tio que já devia estar no asilo há muito tempo. A pobre cuida do velho que é viúvo e não tem filhos. Dizem que ela é muito estudiosa e vai fazer faculdade na capital.

- Mas Regina do que?

- Acho que é Souza.

- Obrigado... Ah! Já ia esquecendo. O bolo que comprei pro aniversario da minha priminha estava excelente. A senhora é uma confeiteira de muito talento.

- Ah, querido. Tudo o que faço é com muito carinho. E quando sei que é para um cliente especial sempre uso “aquele” ingrediente.

- Que ingrediente?

- Você sabe, Amor...

Fiquei em silencio e esbocei um sorriso amarelo. Acho que ela quer fazer um bolo “especial” pro meu aniversário, pensei.

- Roberta, você tem razão, quando se tem amor pelo que se faz... Agora tenho que ir. Amanhã viajo 80 km para dar minhas aulas de pintura.

Regina nunca fez outra coisa a não ser enxugar os cabelos olhando fixamente o pavão que criava no pátio de casa. Eu estava ficando até com raiva do bicho. A espionava pelo furo de uma vidraça quebrada. A velha Gumercina, uma dessas velhas loucas que toda a rua que se preze tem, atirou uma pedra na minha janela e fez um escândalo. Disse que eu era um vagabundo e só pensava em tentar invadir a sua casa para fazer mal. Pobre velha era biruta e taradinha. O vidro quebrado acabou tendo serventia sendo o olho mágico dos meus desejos.

Nos finais de semana sempre a mesma torta, sempre o mesmo cursinho que pinturas para senhoras da terceira idade. Elas faziam cópias de naturezas mortas, paisagens de campos ou praias. As cores pareciam desbotadas. Os mares eram cinza com um pouquinho de azul pra não ficar assim tão cinza. O céu era azul bebê pra não ficar tão cinza o conjunto da obra. O sol era sempre de um tom apagado, nunca amarelo radiante. Estava começando a me convencer que a alma daquelas senhoras é que estava desbotada. Bem que Antonia me aconselhou a fazer quadros vendáveis. Minha teimosia artística me fez um professor de Cursinho de Pintura para Melhor Idade, mas insisto em chamar de Curso de Iniciação as Artes Plásticas.

Antonia já tinha passado dos quarenta, o problema não era a idade. O problema eram seus quadros de paisagens desbotadas. Mantínhamos encontros em fins de semana a três anos, ela morava numa chácara afastada da cidade, não custava nada ir lá dar umazinha e deixar minhas roupas pra empregada lavar.

Durante a semana passeava pelas ruas sem destino, desleixado, contando os trocados pra beber um forte e jogar no bicho. Só existia um momento de vaidade na minha vida, de segunda a sexta admirar-la. Era uma vaidade tão boa acreditar que aquela menina fazia um jogo de charme comigo.

Era uma sexta-feira e tinha saído à lista de aprovados no vestibular. Procurei o nome Regina Souza. Estava lá. A vaga era para o curso de Economia. Fui trabalhar. No lado oposto da rua, mesmo com o boné afundado até as sobrancelhas dava pra ver o brilho no olhar dela. Nos lábios um sorriso bom inquilino. Todos os sorrisos moram de aluguel na boca.

No final de semana não visitei Antonia.

- O que foi isso meu amor? Suas mãos...

- Bandidos encapuzados me atacaram. Os desgraçados me confundiram com outro cara eu acho. Disseram que eu ia apanhar por que tinha roubado o meu sócio e transado com a filha do cara. Você quer dizer que a gente pegou o cara errado? Que a gente é burro e não sabe fazer nosso trabalho direito? Ah é!? Vai apanhar pra caralho, só pra aprender a não se fazer de bobo.

- Eu disse que não era quem eles estavam procurando. Disse que eles poderiam levar minha carteira. Nada adintou. Quebra as mãos desse safado. E aproveita também pra dar uma boa marretada no saco dele. O patrão disse pra não matar o filha da puta. Então só vamos dar uma liçãozinha.

- Querida, foi terrível. Nem gosto de lembrar. Eles riram e acharam engraçado quebrar minhas mãos quando disse que era pintor.

-Quando isso aconteceu?

- No sábado. Eu estava vindo te visitar.

- Pobrezinho.

Antonia era artista só nas horas vagas. Ela trabalhava o dia todo em uma fabrica de bonecas e começou montando as cabeças das meninas de plástico. Sempre muito dedicada foi crescendo na empresa e hoje é uma das supervisoras mais elogiadas. Eu não consegui espaço no mundo das artes e acabei me tornando funcionário público. O esquema de dar aulas pras velhas surgiu só por causa da indicação da Antonia.

-Você vai ficar aqui comigo. Vou cuidar muito bem do meu amorzinho. Estas mãos vão ficar bem curadinhas.

Ri por dentro. Um amigo ortopedista me ajudaria a fazer o teatrinho. Ele fez o par de luvas de gesso que simulava meu traumatismo. Durante uns três meses eu teria que conviver com a Antonia diariamente. Como resolver este problema? Tornei-me psicologicamente instável em virtude da violência que sofri. Meu psicólogo recomendou isolamento total. Ele era um psicólogo com técnicas de vanguarda, um homem renomado, a frente do seu tempo – um bom ator aposentado. Meu ortopedista? Era na verdade escultor de anões de jardim, pelo menos sabia mexer com gesso. Com a história do isolamento nem precisei usar muito as luvas. Antonia às vezes insistia em me ver. O “doutor” vinha me dar uns calmantes e eu a deixava entrar. Era a melhor hora. Sentia-me como um ator dramático.

Problema mesmo foi o dinheiro que gastei com os caras da prefa pra sustentarem que eu estava com as mãos quebradas mesmo. Tive que dar uma grana pro chefe do departamento de pessoal caras do departamento de pessoal e uma grana pro médico perito; ainda bem que eu tinha dinheiro guardado. Minha total reabilitação se daria dois dias antes de Regina começar a faculdade na capital. Logo que me reabilitasse tinha “exames médicos” marcados adivinha aonde?

Era imperativa a vontade de pintar o olhar daquela menina
Num mural imenso
pra chamar atenção
A cena que via todos os dias
A menina do olhar colorido
que ofuscava as penas do pavão.

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