domingo, 20 de julho de 2008

Machado, o mulato branco

Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo de hoje

Borges, o maior escritor argentino, era um conservador. Ninguém duvida disso. Simpatizava com Pinochet e com mais alguns ditadores. Louis Ferdinand Céline, um dos maiores gênios da literatura francesa moderna, era racista. Simpatizava com o nazismo. Ninguém contesta essa evidência. Tampouco se diminui o talento de Borges e de Céline por causa dessas manchas biográficas. No Brasil, porém, continuamos positivistas e idealizadores. Queremos heróis impolutos, perfeitos e eticamente triunfantes. Caxias não massacrou os paraguaios. Canabarro não traiu nem foi negligente em Porongos. O mulato Machado de Assis não foi omisso em relação ao escravismo brasileiro. Se for preciso, mentimos, enfeitamos e entortamos a história para que as expectativas se confirmem. Nestes festejos do centenário da morte do maior clássico brasileiro, as fanfarras estão soltas e garantem solenes: Machado fez o que pôde.

Não fez. Machado de Assis foi omisso quanto ao abolicionismo. Não se comportou como intelectual. Não saiu da sua esfera, a literatura, para denunciar abertamente a infâmia da escravidão. José do Patrocínio e Joaquim Nabuco o fizeram. Em 2003, o historiador Sidney Chalhoub, professor da Unicamp, publicou um livro para limpar a ficha de Machado. 'Ele não foi tribuno, nem na imprensa, nem no parlamento. Mas sua atuação na administração pública, para alargar os sentidos da lei de 1871 (Lei do Ventre Livre) e conseguir que de fato beneficiasse os escravos, impressiona', disse Chalhoub, em entrevista à revista Época. Machado de Assis, como chefe de uma repartição do Ministério da Agricultura, teria dado pareceres sempre favoráveis às demandas de escravos. Sem dúvida, está muito bem. Mas a questão central é outra: por que Machado, sendo cronista de jornal, não foi tribuno da causa abolicionista?

Espaço não lhe faltava. Chalhoub pensava tê-lo redimido: 'Ele fez o que estava a seu alcance para interpretar as coisas de modo a beneficiar os escravos. A seu modo, marcou posição contrária à escravidão e à ciência racial. Machado estava inserido nas questões políticas e sociais de seu tempo. Sua literatura adquire novos sentidos se vista dessa forma'. Falso. Ele não fez o que estava ao seu alcance. Estava ao seu alcance escrever nos jornais em defesa da abolição. Será que o mulato pobre, em busca de ascensão social, não queria se comprometer de forma explícita, preferindo algumas ações discretas? Não seria mais eficaz ter usado sua ironia para ataques diretos ao escravismo? Machado não foi um abolicionista como poderia ter sido. Assim como não queremos colocar algemas em nossa elite, queremos eximir nossos clássicos das suas escolhas ou limitações.

Chega de endeusar Machado de Assis pelo que ele não fez. Ele foi grande em literatura. Já é suficiente. Ao menos, em metade da sua literatura, depois que enterrou o romântico intragável e piegas da sua primeira fase, aquela que apavora adolescentes indefesos. Os livros, a fundação da Academia Brasileira de Letras, a discreta elegância e a morte o branquearam. Nem precisou recorrer às cirurgias de um Michael Jackson. Na sua certidão de óbito, Machado é descrito como 'branco'. Será que foi mais uma ironia de Brás Cubas como biógrafo do seu inventor, pensando num livro que poderia se chamar 'Memórias Póstumas de um Mulato que Morreu Branco'?

Nenhum comentário: