sexta-feira, 18 de abril de 2008

Um gole para o poeta

Ana Zyk

Aquela, entre todas as noites de bebedeira e conversas infindáveis sobre filosofia, arte e literatura no bar Aurora, foi uma noite diferente. Entre muitas as noites que, de um copo para outro, o escritor brindava seus livros mal-vendidos e poesias engavetadas, ele sentiu que sua alma fez-lhe um brinde. Foi no momento em que ela entrou. Toda donzela, toda branquela. Seu perfume Il Segreto Dell´ollio doce e leve entrou como um furacão no recinto adentrando suas narinas e limpando todo seu pulmão do pretume deixado pelo cigarro e substituindo toda a fumaça pesada e o odor do cigarro de linho Rua da Imperatriz n°63A apreciado pelo escritor. Largou o copo de cerveja na mesa, limpou o bigode de espuma. Ficou observando-a.

A distância de três mesas diagonais da sua já era longe demais para ele. Pegou o copo da cerveja novamente. Não mais com o intuito de pegá-lo, mas sim com o desejo de que aquele copo fosse qualquer parte do corpo da donzela. Bebeu o líquido, não mais com o intuito de bebê-lo, mas sim de que tivesse bebendo seus lábios. Limpou o bigode de espuma, consciente de que se fosse a saliva da donzela não iria querer limpar mais. Largou o copo na mesa. Sua sede de bebê-la aumentava a cada gole de cerveja. Foi aí que decidiu.

Entre os dedos amarelados de cigarro, uma caneta Montblanc Meisterstück 149 escorrega com destreza no papel fino do guardanapo em cima da mesa cambaleante do bar. A caneta, seu amuleto da sorte por ser um presente do amigo escritor Carlos Drummond de Andrade quando lançou seu primeiro livro, só era usado nas horas em que se propunha a romancear.

“Qualquer flor se encantaria com sua beleza. Mesa ao lado. J.A.”

Sim, foi tudo o que escreveu para ela. Seus colegas escritores, garçons e o dono do bar, sabendo da limitação do amigo em só usar a caneta no momento de seu trabalho espantaram-se.

“Um momento de inspiração”, cochicharam.

Guarda a caneta. Dobra o guardanapo. Chama o garçom. Ele vem em sua direção.
Na entrada do Aurora. Um homem surge como que um espectro. Alto, esguio, garboso. Tira o chapéu. Vai em direção à donzela. Beija sua mão. A donzela enrubece.

O garçom chega até o escritor. Segurando o guardanapo dobrado e olhando para a donzela enrubecida, o escritor pede mais uma. Guarda o guardanapo no bolso. Brinda. Não livros mal-vendidos, mas sim um bilhetinho de guardanapo que será guardado junto com as poesias engavetadas. Naquela noite bebeu todos os goles ainda sonhando que cada qual valeria um beijo molhado de sua donzela.

Sem poder esquecê-la, todas as noites ele ia ao bar Aurora relembrar, nos goles de cerveja, aquela admirável figura e escrever, em um bilhetinho de guardanapo, suas mais belas poesias, brindando-as antes de esquecê-las na gaveta.

Um comentário:

Anônimo disse...

o poeta não morreu: foi ao inferno e voltou