segunda-feira, 9 de julho de 2007

Vita Brevis

Everton Maciel


Vita Brevis
é um livro escrito pelo consagrado norueguês Jostein Gaarder. A obra merece atenção de todas as pessoas apaixonadas pela tentativa de compreender o movimento do amor entre homens e mulheres. Gaarder relata ter adquirido, num sebo do famoso mercado de San Telmo em Buenos Aires, uma cópia manuscrita da carta Codex Florie, supostamente escrita por Flória Emília e endereçada a um dos mais tradicionais santos da Igreja Católica, Aurélio Agostinho, santo Agostinho, conhecido até hoje como O Bispo de Hipona.


Antes da história legitimada pelos pastores da Igreja Católica, é de conhecimento dos historiadores o famoso romance de Agostinho com a fogosa Flória. Em alguns livros, ela é considerada uma pervertida, mas, ultimamente, a influência do cedro cristão parece não rondar mais os pesquisadores e ninguém anda condenando os costumes sexuais da moça.


Li a obra autobiográfica Confissões, de Agostinho, escritas em 400 d.C., e tenho que confessar: achei o texto uma chatice. Um papo furado escrito por um pervertido, que acordou numa manhã e decidiu que precisava salvar sua alma dos “pecados terrenos”. O fim da ópera nós conhecemos: ele se converteu, tornando-se um dos teóricos mais aplaudidos do cristianismo.


Pois a mãe do Agostinho, igualmente santificada pela igreja – santa Mônica, encheu tanto a cabeça do cara que ele acabou abandonado a pobre Flória. A coitadinha ficou anos e anos se martirizando, sentido falta do amado com quem teve um filho, Adeodato. Quando resolveu que seria um santo, Agostinho partiu, levando consigo o filho e deixando o coração da pobre mãe e mulher despedaçado.


Flória subiu nas tamancas quando teve acesso a autobiográfica do ex-companheiro de prazeres. Ela pirou, e com razão. A coitada fora citada só duas vezes pelo homem a quem dedicou toda sua vida. Se a indiferença não bastasse, Agostinho deixou Flória parecendo uma meretriz. “Eu era escravizado e atormentado pelo hábito de saciar uma insaciável concupiscência. Viver com uma mulher sem ser casado com as bênçãos ungidas pela santa lei de Deus”, escreve o outrora tarado, hoje convertido, Agostinho.


As respostas de sua amante na Codex Florie não são a altura. São centenas de vezes mais filosóficas e elaboradas! Escreve Flória a “Aurel” – diminutivo usado na intimidade do casal: “quando li esse trecho, tive que rir em voz alta. Como tu mesmo confessas, vivíamos como um casal. Com a diferença vital de que não tínhamos declarado um para o outro com a intervenção de nossos pais. Se não me amasses teria tido outras mulheres ou ido a um bordel, Aurel!”


Flória deixa em seus escritos uma dedicação apurada aos estudos da Filosofia. Para esculhambar com ex-amante, ela cita estóicos, céticos e platônicos. Além disso, chama Agostinho de “eclético”. Apesar do uso corrente não ser lá cabeludo, a utilização do termo é um verdadeiro xingamento a qualquer filósofo. Pois o ecletismo é uma das escolas mais fracassadas da História da Filosofia. Se não bastasse, Flória acusa Agostinho de sonegar partes fundamentais de citações que ele teria extraído do livro de Coríntios para construir um argumento complexo em suas Confissões. Ela pegou pesado, mostrando o que muitos teólogos – e, especialmente, teólogas – já sentenciam há um bom tempo: o papel fundamental que as mulheres exerceram na igreja foi sonegado para que os homens não perdessem sua posição. Machismo puro.


A Idade Média realmente deixou dúvidas que só a própria Igreja Católica pode esclarecer para a humanidade. Seria a transcrição da Codex Florie um documento original, datado do século XVI, como jura Gaarder? Existira ainda um pergaminho original escrito pelo punho de Flória nos porões do Vaticano, onde só Papa e meia dúzia de Cardeais têm acesso?


Tudo isso é irrelevante. O que importa, e neste ponto os historiadores são unânimes, é que a Flória amava Agostinho, e Agostinho amava Flória. Mas ele preferiu um tal de Nazareno, na intenção de salvar sua alma. Isso nos mostra que até os grandes pensadores fazem lá suas burrices. Chateia, mas, pelo menos, conforta.

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