terça-feira, 17 de abril de 2007

Romance moderno

Martin de Martin

Fala sério, professora. Eu aqui na sua cama e a Senhora sai com uma pergunta dessas. É evidente que papai vai ficar "fulo" quando disser a ele. Concordo, talvez devesse saber que ingressei na Faculdade de Letras. "No segundo semestre contarei", ficou para o terceiro e no quinto ainda me esquivo. "Administrador de empresas, filho". Eu? Com essa gelatina de coração? "O vento que move o mundo atende pelo nome Grana, garoto". Até a formatura há mais um ano e meio. Sabe, não interfiro nas opções dele, mesmo quando discordo delas. Deveria respeitar meu planeta.

Por que ainda insisto lendo contos? A magia das borboletas é justamente pelo efêmero, o breve e intenso colorido de suas vidas. Concordo professora, os romances agradam mais, marcam na pele, quando bons. Mas o conto é a vida, essa intensidade plena em poucas linhas. Viveste mais nestes 40 e tantos ou eu nos meus 20? Claro, evitas a resposta. É o medo da verdade. Gosto de apreciar as coisas como um aidético, sem tempo, que busca captar o todo onde outros vêem quase nada.

Aceita um fumo? Tá esquece. Tô nem aí pra nota da prova. Tem um cheiro bom tua cama, de perfume caro. É quase melhor que as páginas amareladas de Tchecov, Poe, Cortazar. "A aposta", conhece? Li três vezes. Meu pai devia ler esse conto. Talvez ele fosse outro homem se tivesse devorado Hemingway ou Dostoiewsky na adolescência. Por que implico tanto com ele? Por que você faz tantas perguntas? Ele poda meu espaço, questiona e responde ao mesmo tempo. Vocês se parecem, sabe. São certinhos, regrados, malas, resumindo. Tem hora que um palavrão resolve, assim, sem complexo de soltar o verbo e alguns substantivos.

Papai não irá à formatura, aposto algum com a senhora. "Letras? Boiolice, filho. Homem tem é que ganhar dinheiro. Cérebro demais estraga o sujeito". A vida é uma linha reta, sem margem para erros, é o que pensa e repete sempre que toco no assunto. Pensa como a Senhora, que a vida é um romance, linear e chato. Verdade, professora, em 400 anos de literatura brasileira, tira Machado e não se tem mais um único romance aproveitável. Uma "nhaca" só. Aí um Boccacio sozinho é mais veneno que nossa constelação inteira.

Se vou lecionar? Nem sei se concluo a faculdade. Minhas notas não estão lá essas coisas, talvez fique no meio do caminho, antes dos estágios. Professora universitária ganha bem? A grana tá mais pra romance que pra conto... entendo sua evasiva. Tenho três semestres para pensar nisso e contar ao velho que o seu administrador de empresas é um maconheiro literato. Claro, ele vai entender, depois de bloquear minha conta bancária. Um amigo meu, escreveu dia desses, que gosta dos prédios em construção, porque não tem forma definida, estão inacabados e podem ser visitados a qualquer hora, sem o formalismo dos apartamentos residenciais. Não quero ser um chato como meu pai, com amigos escolhidos de acordo com o talão de cheque e rodeado de prostitutas ocas. Seria um bom personagem para um romance, ele, que de minha existência nada se tira, ou então eu seria um conto de Poe. "Vou te correr de casa se aparecer novamente com estas roupas escuras, cheiro de erva e papo de veado", que é como descarrega. Não estaria na sua cama se curtisse transar com homens, não acha? Veado não sou.

Se sei que já amanheceu? E daí? Não vou trabalhar mesmo. A Senhora vai? Quando voltar pro almoço ainda estarei na cama. Tenho fumo para mais um barato e grana. Administro bem a mesada do velho, entende. Não me compreende? Nem eu.

Assediar aluno é chave de processo, sabia disso, teacher? Ah, é verdade, eu a cantei no bar durante quinze dias. Estou curioso, quero ler nos seus olhos uma explicação para estarmos aqui agora. Romantismo não cola fora da sala de aula, disciplina a abolir. Aposto que às vezes pensa com a pele. Já vai?

Pô, professora, apaga a luz.

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