quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Memorial descritivo

Sabe o que é um memorial descritivo? É um texto que a banca de seleção do mestrado pede para os candidatos fazerem. Um tipo de carta. Lá, em tese, segundo o edital, eu devo falar da minha vida pregressa - isso me lembra os BOs da Polícia Civil - e defender o motivo de ter escolhido minha linha de pesquisa. A banca não lê. O que importa para eles, com razão, é o projeto de dissertação. Mas a pró-reitoria de pós-graduação manda fazer e pronto. Burocracia. O estado Brasileiro adora engavetar papeis em enormes arquivos. Fetiche puro. Coisa de burrocrata. Assim, com dois erres, mesmo. Já que o memorial descritivo não serve pra nada, eu publico aqui. Rá!

Trabalho desde os 13 anos. Vendi sacolé, rifas, distribuí panfletos publicitários e entreguei jornal. Quando a lei permitiu, aos 16 anos, um empregador desavisado assinou minha carteira de trabalho. Labutei para o mesmo grupo de rádios e jornal até os 24 anos. Iniciei como técnico de áudio, lendo notas de falecimento para rádio e escrevendo obituário de jornal. Ao terminar o ensino médio, comecei o curso de Comunicação Social com a intenção de me habilitar como jornalista. Burrice da minha parte. No pouco tempo que tolerei aquele insipiente ambiente acadêmico, tudo que aprendi é que a universidade não forma jornalistas. Na segunda aula de Ética, me despedi e nunca mais voltei para o curso. Ingressei na Filosofia justamente para suprir essa lacuna que há entre prática e teoria. Busquei a Filosofia com o interesse de me desenvolver pessoal e profissionalmente. Naturalmente, nenhum dos meus projetos está completo.

O próximo passo é o ingresso no mestrado. Com isso, espero voltar ao ponto inicial e aprofundar meus conhecimentos a respeito de ética, política, direito e sociedade. Não tenho interesses grandiosos. Não quero mudar o mundo. Não pretendo, sequer, convencer alguém a mudar sua opinião. Quero estudar, porque gosto disso. Só.

Meu interesse na linha de pesquisa “Fundamentação e Crítica da Moral” também é fácil de compreender. John Stuart Mill, autor de corrente anglossaxã, pouco estudado no Brasil, é reconhecidamente um fundacionalista. Essa identificação pode parecer estranha e é usada, frequentemente, de forma pejorativa tanto para identificar Mill, quanto outros autores do utilitarismo clássico. No entanto, salvo raras exceções, a história da filosofia repousa permanentemente sob autores que, mesmo tentando se afastar de fundamentos últimos, se comportaram levando em conta a consequência de suas teorias. O consequencialismo, preocupação de quase todos, é considerado, apenas pelo utilitarismo, como pressuposto fundamental.

No mestrado, procurarei analisar as obras de Mill a partir de uma leitura que se distancie de defesas ortodoxas. O utilitarismo clássico é, inegavelmente, o modelo teórico mais criticado na contemporaneidade, prova de que está longe de ser sepultado. Nego-me a acreditar na análise simplista e superficial que atribui à sobrevivência da teoria utilitária, apenas, à importância histórica dos autores liberais no contexto exclusivo da modernidade. A pergunta que muitos críticos não se fazem é: afinal, por que o utilitarismo sobrevive, mesmo que como saco de pancadas? A teoria utilitária é responsável pelo afastamento de várias posições consideradas unanimemente absurdas, mas que ocupariam lugar na filosofia teórica não fossem autores como Mill. Como sabemos, há referenciais teóricos para afirmar que homofobia, ideais nazistas, preceitos xenófobos, machismo e especismo ocupariam, tranquilamente, lugar em teorias contemporâneas não fossem autores como Mill. Hoje, se afirmamos que essas ideias maléficas à sociedade não repousam sobre argumentos éticos, o mérito é do utilitarismo. Não bastasse essa medalha inegável, a compreensão utilitária é a única que saltita diante dos nossos olhos quando observarmos as decisões econômicas e políticas.

O utilitarismo é ferramenta constante para nossas decisões. Isso não é um argumento suficientemente sólido para que possamos dizer que ele é legítimo. No entanto, o progresso social patrocinado pelo princípio da utilidade é inegável. Precisamos pensar os motivos pelos quais reclamamos por decisões utilitárias quando elas não são previstas. Se o hedonismo, critério fundamentalista de Mill, é promotor de uma subjetividade considerada tão grosseira, precisamos acordar outra lista de princípios mínimos e a felicidade, mesmo distante da noção de prazer, sempre será objeto da nossa preocupação.

A riqueza de Mill está justamente na comunhão da sua teoria liberal, utilitária e, por fim, jurídica. Procurarei me ater a esse último ponto. Não é possível absorver a liberdade e a felicidade como dois bens intrínsecos e irrevogáveis. Precisamos da utilidade social, um critério de decisão razoável, para conhecer os limites da liberdade. A ferramenta onde vemos esse critério operar é o sistema jurídico. John Stuart Mill tem muito a nos ensinar sobre isso.

Sem mais, meritíssimo.

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