sexta-feira, 3 de abril de 2009

Campo dos bugres

Clairto Martin

A construção erguia-se à margem do riacho, imponente na paisagem fria, de uma neblina que parecia engolir tudo. Uma casa de troncos de árvore, um galpão coberto de capim santa-fé, e um estábulo onde amanheceram amarradas as três vacas, o novilho e dois cavalos. No pátio de chão batido, entre um cão que estava deitado ao lado da escada de três degraus, algumas galinhas ciscavam minhocas e insetos.

A casa permanecia fechada. Os primeiros raios de sol que vararam a névoa encontraram uma paisagem fantasmagórica. Mas havia ruídos no seu interior, um arrastar de móveis pesados, uma criança que chorava, alguns sussurros.

Foi isso que Antônio Romero encontrou quando dobrou a curva onde o riacho serpenteava. O cavalo bateu firme o casco no chão quando o cachorro levantou-se, rosnando, alertando os moradores para a visita. Conhecia a casa, a família, as redondezas. Na verdade já vasculhara cada palmo de chão entre as Missões e o rio grande, e não raras vezes já se questionara como a família Antero insistia em ficar naquelas paragens.

- Oh de casa! - bradou do pátio, a mão na pistola e ainda sobre o lombo da montaria. Estava assustado também, como todos os moradores do Continente. As estrepolias com os bugres aumentavam à medida que o exército das duas coroas forçava o deslocamento da população dos Sete Povos.

Estava na estrada há dias. A pedido do destacamento visitava os poucos colonos que ainda insistiam em ficar na área do conflito. A casa dos Antero ficava no meio do caminho. Era a terceira vez em poucas semanas que passava ali. Se bem que tinha outros motivos, bons motivos. Ao bater palmas, o cão pôs-se em pé e rosnou mais forte, os olhos fixos em algum ponto mais além, no meio da cerração.

- Da parte de quem? - gritou-lhe uma voz masculina, que logo reconheceu como sendo de Bueno Antero.

- Do capitão Camargo, da guarnição de Rio Pardo.

O cão voltou a rosnar mais insistente, depois latiu, acompanhando o jovem soldado apear da montaria. Outra vez ouviu móveis sendo arrastados no interior da casa, alguma ordem evasiva à mulher, e logo um homem muito alto e forte apareceu à soleira da porta. Embora o conhecesse, não lhe estendeu a mão, como das outras vezes. À mão, trazia uma espingarda de caça, de grosso calibre, comprovando a inquietação reinante.

- O que há, homem? Parece que nunca me viu antes....

Mediram-se. O colono apertou ainda mais a arma entre os dedos; o jovem soldado cessou o avanço pelo pátio, indeciso diante do comportamento hostil. O silêncio aumentou, como se a névoa outra vez estivesse se adensando. Se havia ruídos, eles não os perceberiam.

- Não é mais pessoa bem-vinda à minha casa, soldado.

No vão da porta, ao fundo, apareceu a figura magricela da jovem esposo de Bueno Antero, trazendo consigo um menino de uns dois ou três anos. Fez-lhe um gesto anunciando-lhe cuidado.

- O que está acontecendo por aqui, homem? - Interpelou o soldado, sem desgrudar os olhos da arma que o outro apontava ao chão.

- Temo que haja algum interesse especial nas visitas que me fazes, soldado – disse, a cabeça levemente pendida ao local onde a esposa assomara. - Ou vai me dizer que é simples coincidência o fato de aparecer quando estou pelo campo...

Havia um silêncio de conspiração no ar. Menos com o cão, que passou por entre as pernas do visitante e rumou ao curral, ainda rosnando, como se estivesse incomodado com algum animal estranho. De lá, também veio um relincho. Era tudo que se ouvia, como se a natureza toda estivesse morta ou aguardasse um temporal. E ele veio...

- Acusação injusta, homem... - argumentou Antônio Romero, a mão pousada outra vez no cabo da pistola que trazia à cintura, as pernas já posicionadas para recuar.

- Agora entendo toda a movimentação dessa noite, o mal-estar dela – apontou a esposa – e a súbita necessidade de ir aos pés duas vezes em meio à madrugada. E eu que pensava que os bugres andavam por estas paragens...

- Ei, ei... eu cheguei agora, homem...

- Deve ser mesmo – riu, apontando um chumaço de capim seco sobressaindo-se na farda. - Aposto como meu galpão deve ser bem quente...

O que se deu foi questão de segundos. A fumaça das armas misturou-se à névoa da manhã, e os estrondos dos disparos fizeram voar as aves que dormitavam na orla da mata. Antônio Romero caiu de costas no meio do pátio, já o sangue jorrando aos borbotões no peito. A pistola que sacara às pressas fumegava. Ainda pôde ouvir o grito de uma criança, antes de fechar os olhos. Ela, a jovem, tinha um rombo no rosto disforme.

Incrédulo, Antero permaneceu estático à porta, ouvindo o choro do menino, que neste instante abafava todo e qualquer outro som. Olhou o filho abraçado à mãe, e sem que lhe viesse outra ideia à mente, sacou da pistola, disparou-a à queima roupa e depois desembainhou a faca de caça que passou no pescoço, de lado a lado.

O silêncio tomou conta de tudo por alguns minutos, antes de inúmeras sombras saírem da neblina, vindas do curral, puxando alguns cavalos pelas rédeas. Achegaram-se, passaram entre os corpos, e fizeram alguns comentários, antes de cruzar o riacho e tomar a mata outra vez.

Nenhum comentário: