domingo, 22 de março de 2009

Arlinda

Charles Kiefer

Sentei e pedi uma cerveja bem gelada. Fazia um calor terrível, nem uma brisa, um ventinho que fosse, para aliviar a tarde de domingo. Os carros passavam na avenida, cheios de burgueses tisnados pelo sol da praia. E sorriam. Tinham coragem de sorrir aos que ficaram na cidade no feriado, como nós, os eletricistas, os mecânicos, os comerciários. Respirei fundo e me entrou pelas narinas o cheiro de gordura, cebola frita, lingüiça calabresa, ovo. Não agüentei. Troquei de mesa, fiquei o mais longe possível da cozinha da lancheria. Tudo na vida tem o a e o z. Ficasse na outra ponta, tinha perdido a história, tinha perdido o meu tempo, furungando minhas próprias feridas. O que me fez prestar a atenção na conversa dos dois foi o nome da mulher: Arlinda. Pode? Sempre pensei que eu era o único homem na cidade a amar uma Arlinda. Se eu fosse cavalo ou cachorro, teria levantado as orelhas. Fiquei só de oitiva, bicando a borda do copo, em golinhos. E a enxurrada de desaforos do grandalhão ao lado só cascateando nos labirintos e bigornas dos meus ouvidos. O cara estava puto, que a vida dos dois era uma merda, que ela sempre tinha razão, que eles não passavam um dia sem brigar, que ela distorcia tudo, que se transformava num demônio quando estava de boi, que os signos deles eram incompatíveis, embora semelhantes, escorpião e capricórnio não dão certo mesmo, e sei lá o que mais. Pedi outra e fiquei ali, doido pra mijar, mas me segurando, não queria perder uma letra. Sequer levantei a cabeça. Não quis nem conferir as parecenças das Arlindas. O cara engrossou, queria separar, começar vida nova com quem o merecesse. E Arlinda quieta, digna. Envergonhada, com certeza, do vexame. Feito a minha Arlinda. A briga ao lado cresceu, ele ameaçava bater no primeiro que se metesse. Eu, e o resto do povo, uns operários de construção, duas adolescentes gordas, os garçons entediados, não estávamos nem aí. Numa briga, se um galo abaixa a crista, o outro se desinteressa. A mulher chamou a conta, o homem se aquietou. Então, como um viajante cansado, um estrangeiro de terras distantes, levantei os olhos. Ela tinha as carnes flácidas e o rosto envelhecido. Ele, parecia mais jovem, era moreno, alto e forte. Ela fez o cheque e se levantou. Ele apressou o passo, de cabeça baixa. No meio da rua, agarrou a mão dela, não sei se com ternura, não sei se com o mesmo ódio de ainda há pouco. Pedi outra cerveja e pensei em Arlinda, que tinha me expulsado de casa, como faz em todos os domingos, que é também uma capricorniana dos diabos, fria, cruel, teimosa e egoísta, desconfiada e pão-dura. Tenho tendências destrutivas, como todo aquariano, mas sou equilibrado e constante, inteligente e fiel. Vou terminar essa cerveja e voltar para casa, que algo me diz que a esta hora a Arlinda já está mais calma, preocupada apenas com a segunda-feira e com a prensa que os fiscais andam dando nos ambulantes.


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