sábado, 4 de outubro de 2008

Galeano, em bom tom

Celebração das contradições/1

Como trágica ladainha a memória boba se repete. A memória, viva, porém, nasce a cada dia, porque ela vem do que foi e é contra o que foi.

Aufheben era o verbo que Hegel preferia, entre todos os verbos do idioma alemão. Aufheben significa, ao mesmo tempo, conservar e anular; e assim presta homenagem à história humana, que morrendo nasce e rompendo cria.


Celebração das contradições/2

Desamarrar as vozes, dessonhar os sonhos: escrevo querendo revelar o real maravilhoso, e descubro o real maravilhoso no exato centro do real horroroso da América.

Nestas terras, a cabeça do deus Elegguá leva a morte na nuca e a vida na cara. Cada promessa é uma ameaça; cada perda um encontro. Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão.

Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia.

Nessa fé, fugitiva, ou creio. Para mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louca aventura de viver no mundo.


Paradoxos

Se a contradição for o pulmão da história, o paradoxo deverá ser, penso eu, o espelho que a história usa para debochar de nós.

Nem o próprio filho de Deus salvou-se do paradoxo. Ele escolheu, para nascer, um deserto subtropical onde jamais nevou, mas a neve se converteu num símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu europeizar Jesus. E para mais inri, o nascimento de Jesus é, hoje em dia, o negócio que mais dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha expulsado do templo.

Napoleão Bonaparte, o mais francês dos franceses, não era francês. Não era russo Josef Stálin, o mais russo dos russos; e o mais alemão dos alemães, Adolfo Hitler, tinha nascido na Áustria. Margherita Safatti, a mulher mais amada pelo anti-semita Mussolini, era judia. José Carlos Mariátegui, o mais marxista dos marxistas latino-americanos, acreditava fervorosamente em Deus. O Che Guevara tinha sido declarado completamente incapaz para a vida militar pelo exército argentino.

Das mãos de um escultor chamado Aleijadinho, que era o mais feio dos brasileiros, nasceram as mais altas formosuras do Brasil. Os negos norte-americanos, os mais oprimidos, criaram o jazz, que é a mais livre das músicas. No fundo de um cárcere foi concebido o Dom Quixote, o mais andante dos cavaleiros. E cúmulos dos paradoxos, Dom Quixote nunca disse sua frase mais célebre nunca disse: Ladram, Sancho, sinal que cavalgamos.

“Acho que vocês está meio nervosa”, diz o histérico. “Te odeio”, dia a apaixonada. “Não haverá desvalorização”, diz, na véspera da desvalorização, o ministro da Economia. “Os militares respeitam a Constituição”, diz, na véspera do golpe de Estado, o ministro da Defesa.

Em sua guerra contra a revolução sandinista, o governo dos Estados Unidos coincidia, paradoxalmente, com o Partido Comunista da Nicarágua. E paradoxais foram, enfim, as barricadas sandinistas durante a ditadura de Somoza: as barricadas, que fecham as ruas, abriam o caminho.


Vagas idéias de "O Livro dos Abraços", de Eduardo Galeano.

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