sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Nocturne

Esse conto, de Ana Zyk, será publicado em cinco partes. Todas as sextas-feiras sai uma. Aproveitem

O sol forte batendo em seu rosto, a gravata devidamente enlaçada, o terno fazendo-o suar por dentro. Os andares dos transeuntes eram cadenciados pelas notas ora agudas, ora uma escala mais grave do violino de Maza no calçadão da Felipe Schimidt. Corpo ereto e busto para frente, pernas ligeiramente abertas, equilibrando seu corpo longilínio, negro e jovem, beirando seus 30 anos. O violino em sua clavícula esquerda. O arco fazendo cócegas nas crinas do instrumento que gargalhava Mi, ré, lá e sol. E quem sorria também era Maza, cumprimentando as moças bonitas que passavam distraídas pelo local.

As contradições faziam parte da vida do músico. Desafiava a rua movimentada, barulhenta, fedida, com pessoas ensimesmadas no corre-corre das suas vidas, odiando ter que enfrentar a fila do banco, a cara feia do chefe, os afazeres intermináveis. Ele desafiava tudo isso com a limpeza do seu terno e a erudição de sua música. A dureza de seu dia-a-dia afinada com a delicadeza de suas notas. Maza havia feito um pacto com a música: Ele a disseminava pelos quatro cantos, enquanto que ela o ajudava a sobreviver. Era só o que ele queria. As ilusões, ele já havia abandonado há muito tempo. Contraditório também era o fato de um miserável de cor negra e apenas com segundo grau completo, tocar um instrumento “prá rico” como os outros diziam.

Maza tinha um local fixo: em frente a uma praça, a mais movimentada da cidade.

O músico não sabia, mas alguém o espionava daquela praça todos os dias. O observador conhecia o movimento do seu corpo em cada nota lançada ao vento. Sabia os pontos fortes e fracos do músico. Observava tudo. Sabia todo seu repertório. Sabia quem eram as pessoas que o apreciavam com freqüência, que o músico ia embora às sete horas da noite, caminhava até o terminal urbano, pegava o ônibus e seguia até o Morro do Cristal, onde descia algumas ruas antes para passar no boteco e comprar três pães, três fatias de presunto, três de queijo e leite de saquinho. Sabia que o barraco de Maza não tinha divisórias, seus móveis consistiam em uma mesinha, uma cadeira, uma tv 14 polegadas, em que só funcionava um canal, um colchão, um cobertor e que mantia dentro de casa três cachorros velhos e sarnentos. Tinha conhecimento também que, após comer os três sanduíches e tomar todo o leite, Maza tocava Nocturne, de Chopin, com os olhos fechados durante toda a música e depois dormia

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