segunda-feira, 26 de março de 2007

A razão Humana

Everton Maciel

- Não devemos gastar nosso escasso fosfato tentando compreender a razão humana. As maiores mentes do mundo perderam a vida em tal empresa – essas eram as palavras do desequilibrado padre, enquanto baixava o ataúde. O velho Dr. em hermenêutica, e pároco de plantão, estava visivelmente, mais uma vez, tentando sair de dentro de uma garrafa de vinho, enquanto consolava os parentes e amigos ainda petrificados com a tragédia anunciada.

Quatro dia antes, ainda na mesa de cirurgia, o agora presunto desabafou:

- Não sei como seria a história da humanidade sem as três grandes religiões. Pior não poderia ficar. Possivelmente teríamos outros grandes paradoxos, inspirados nos oráculos e deuses gregos – Não era a primeira vez que o vira se lamentar pelo cristianismo, islamismo e judaísmo serem uma realidade.

– Certo é que não teríamos tantos idiotas se matando por um motivo que sequer eles conhecem – justifica.

Juro. Se alguém tivesse me contado, não acreditaria. Se duas pessoas garantissem ter ouvido, ainda assim não acreditaria. Sendo eu que ouvi, não devo contar aos colegas. Primeiro, pela sua mãe, uma papa-hóstia chata, com um mau hálito desgraçado. A velha detestaria saber que o filhinho fora aprovado na universidade com um verdadeiro tratado ateísta sobre a vida de Adolfo Sánchez Vázquez. Chegara a mandá-lo a um seminário para ser padre. Nome de padre havia dado ao miserável. Afinal, ninguém gostaria de ser chamado de João Paulo. Alguém com um nome tão religioso ou é padre ou cantor de música sertaneja.

Outro motivo para ter ocultado o que havia me dito antes de fechar os olhos foram os colegas desprovidos de sensibilidade. Nunca saberiam como publicar isso. Chegaram a me perguntar. Mas disse que ele havia morrido em silêncio. Era o único jeito de não ler alguma bobagem no corpo do jornal do outro dia.

Fugiu do seminário. Saiu jornalista o filho da puta. E não foi o primeiro, nem o último, repórter que morreu na cobertura de alguma guerra. Sadam, num só berro, mandou matar 36.

Estávamos tomando café no hotel, quando os azuizinhos da ONU chegaram com coletes a prova de balas, igualmente azuis. Na frente e no verso dizia, em letras garrafais, que quase podiam ser ouvidas: TV. Um presente dos estadunidenses. Vendo que os militares estavam identificados com a bandeira da França no lado esquerdo de suas fardas, Jô brincou, com um francês muito arcaide.

- Putz, não vê que somos feios demais para trabalhar na TV, oficial?!

TV é a única sigla que os idiotas armados reconhecem, quando vêem os repórteres no front. Jô sempre duvidou que qualquer militar tivesse mais que dois neurônios. Eu também. A única diferença entre nós dois era a forma de mostrar isso no jornal. Ele escrevia com todas as letras: Ataque bestial mata 52 crianças. Juntávamos um texto muito do sem-vergonha com uma foto cavernosa e, obviamente, morríamos respondendo e-mails de todo tipo no outro dia. Os judeus nos chamavam de muçulmanos. Os muçulmanos nos chamavam de judeus. O editor, carinhosamente, nos tinha como Os Mentecaptos. Ligava, aos berros, toda vez que recebia matérias que não lhe apeteciam.

- Os idiotas imaginam a cara que o patrão vai fazer quando ler isso, amanhã?! – soluçava o velho que um dia trabalhara na rádio da empresa, mas só tinha talento para puxa-saco de luxo. Chegou a obrigar um analfabeto da editoria das cidades a fazer curso de árabe. Pensava em nos trazer de volta para casa assim que tivesse o moleque um pouco menos idiota e capaz de lavar as próprias calças. Coitado do piá.

Uma coisa nós tínhamos como certa: O dono daquela balbúrdia, que insistíamos em chamar de Jornal, poderia até perder o dever sexual mensal com as mulheres do mercadão, mas não perdia uma vírgula da editoria internacional. Ligou-nos pessoalmente numa manhã.

– Sabes o quanto meu pai trabalhou para montar essa merda?! – gritava tão alto que, mesmo longe do telefone, eu ouvira.

– Ou tu vejas bem o que escreve nesse teu teclado ou atravesso o Atlântico a nado com esses meus braços velhos para buscar vocês dois, miserável!

É verdade. Sempre tivemos um cargo invejado. Para cada 10 dias fora do país o salário dobrava. Feliz ficava a mulher dele.
Nunca entendi de onde saiu aquela guria... Ô, mau gosto para arrumar mulher! Deve ter sido o costume de ter ao lado aquela mãe. Além de antipática, é feia demais essa tal de Marlise. Só ele conseguia chamá-la pelo diminutivo de "Lise". Não era possível ver alguma coisa diminuída naquele corpo. Depois de alguns meses do casório, já passava da barreira dos 90 quilos.

Em velórios os gordos são personagens nostálgicos. Só comparados às baganas nos pisos das rodoviárias. Lá estava aquela coisa. Ocupando mais de uma vaga no banco. Os velhos tragos, já escassos por causa da mãe, haviam terminado definitivamente depois daquele casamento apressado pela criança que a gorda esperava no ventre. Agora, o guri tinha oito anos. Esperto. Sempre atento aos conselhos inúteis do pai.

- Tu estudas, guri! Senão vais trabalhar na imprensa.

Deus livre a alma do miserável. Dizem que os pais labutam para dar aos filhos o que não tiveram. É bem capaz de ser assim.

- Só me preocupa que podemos chegar ao ponto de não faltar nada aos pequenos, – lamentava deitado sobre um copo de vinho. - Um dia as crianças vão nascer com tudo. Vamos ter que mudar o sistema educacional e a escola vai ter que ensina-los a caminhar. Se quer isso, a família será capaz de fazer.

Tenho quase certeza que o guri era mais capaz que a mãe para conduzir a casa. Grudou em mim assim que desci do avião com o esquife lacrada carregando o corpo do pai. Um dia de sofrimento físico. Um dia para arrumar a papelada. E, só então, a viagem de volta.

Quando chegamos, eu cheirava a enxofre. Além de sujo, nunca odiei tanto minha profissão quando vi os colegas que grudaram no avião. O melhor ângulo de um caixão. Respeito, nenhum. Um deles quase atropelou a velha mãe por uma foto. Será que eu fora assim quando mais jovem?

No velório, um inferno só. Muitos repórteres e aspirantes. Chatos. Organizar coletiva é coisa de gente importante. Então, falei com grupos isolados. Contei a mesma história mais de uma dúzia de vezes. Mas não me importo em relatar outra vez. Afinal, é um causo curto: não sei o que aconteceu! Não vi quem atirou. Não sei se foi militar ou guerrilheiro. Ouvi o disparo e ele estava caído nas minhas costas. O tiro veio do lado direito, pegou no braço e se alojou no peito. O colete azul não servira para nada. Nem o trouxera na viagem. O médico azulzinho fez o que podia. Mas as condições daquele hospital de campanha não era das melhores. Morreu 20 horas depois de cair. O editor só ficou sabendo o que aconteceu quando ligou para cobrar as matérias atrasadas.

- Seu infeliz! Avisasse-me com urgência! Isso merece chamada na capa!

4 comentários:

Anônimo disse...

Não me diga que vai ter mais! Haja saco.

Anônimo disse...

Meu amigo Joquim foi prá guerra com um capacete de aço, levou um tiro na barriga. O que é que adianta capacete de aço?
Pode parar.

Anônimo disse...

republicou sem tirar nem pôr!

Rafael Tiago Godoy disse...

Hummmmmm... pois é...